Pontos polêmicos e críticas não podem atrasar a imediata implementação do novo Programa Nacional de Direitos Humanos, “um documento indispensável para a consolidação da democracia brasileira”, diz Sérgio Adorno, do Núcleo de Estudos da Violência (NEV)Desde que foi lançada pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, em 21 de dezembro de 2009, a terceira versão do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) desencadeou uma onda de protestos, desagradando aos militares e vários setores da sociedade civil, do empresariado às igrejas e ao setor rural.
Segundo Adorno, os direitos humanos estão consagrados na Constituição Brasileira e o terceiro PNDH nasce em cumprimento à lei maior, tratando de direitos essenciais consagrados em todas as sociedades onde a democracia floresceu e se consolidou. “Negar a existência ao programa é o mesmo que subtrair legitimidade ao Estado-nação que constitui e associa cidadãos e cidadãs brasileiros.”
No entanto, no dia 16 de março, o governo federal se rendeu à onda de críticas da sociedade e de entidades sociais e anunciou alterações em alguns pontos polêmicos, como a legalização do aborto, a proibição simbólica de símbolos religiosos em locais públicos e a questão da reintegração de posse de terras. O ministro Paulo Vannuchi, autor do plano, afirmou estar disposto a promover as correções necessárias. “O programa não é lei nem invade competências do Judiciário ou do Legislativo, apenas arrola propostas. Só o publicaremos novamente após construir largos consensos”, disse o ministro à imprensa.
Para Adorno, essas polêmicas e retificações devem ser olhadas pelo lado positivo, porque permitem que a sociedade pare para refletir sobre seus valores. “Não vejo nenhum problema que haja retificações, desde que sejam amplamente discutidas e negociadas”, destaca o professor, e faz um apelo: “O que não foi discutido em meio a essa polêmica é que de fato possamos garantir o monitoramento dos direitos humanos de uma maneira isenta, neutra e que permita, num espaço de tempo razoável, a cada um ou dois anos, que tenhamos um balanço do que avançou e do que não avançou”.
A luta dos direitos humanos não é dos governos, e sim da sociedade brasileira, na qual o Estado soberano tem que garantir a sua efetividade. Sendo assim, os governos deveriam fazer um monitoramento constante e regular, mas não o fazem, lembra Adorno, “cabendo essa tarefa ao NEV, que está pronto para lançar o quarto relatório de direitos humanos no Brasil, com um balanço dos avanços e recuos”.
Adorno vê o Programa Nacional de Direitos Humanos como uma tentativa de articulação de uma série de iniciativas diferentes, visando a torná-las mais eficientes para fazer valer certos direitos. “O que se espera é que o programa avance e, sobretudo, que implique muitas negociações.”
Pelo histórico da sociedade brasileira, Adorno acha que o PNDH possui algumas metas até ousadas e ressalta que se trata de um programa que diz respeito à nossa sociedade e, por isso, busca preservar duas coisas: a diversidade interna e a convivência pacífica. “Todos os brasileiros querem ver seus direitos protegidos e que a educação para os direitos humanos seja o princípio fundamental da convivência. Respeitar esses direitos é propor uma sociedade mais justa, com acesso à justiça, que reconheça que todos os grupos de indivíduos, apesar de suas diferenças, têm direito a ter direitos, assim como respeita as instituições como veículos de promoção, proteção e mediação de conflitos dos direitos humanos.”
Para Adorno, o problema não é tanto o programa em si, mas a sua execução. “Precisamos refletir a capacidade dos governos de executarem as medidas que eles mesmos propõem como metas e diretrizes. As polêmicas são necessárias para o crescimento de qualquer sociedade. É uma ilusão pensar que a democracia é paz permanente.”
Polêmicas – Sobre as divergências a respeito do programa, Sérgio Adorno afirma não ser muita novidade, uma vez que os tópicos mais polêmicos já foram contemplados nas primeiras edições. O grau da polêmica é que está diferente, diz. O controle social da mídia, por exemplo, está referido no segundo e no terceiro programa como uma iniciativa de monitoramento do que é veiculado em geral a respeito dos temas de direitos humanos, e não como uma forma de controlar as informações, como se afirma. “O que se quer é monitorar se há uma fala depreciativa e negativa, incitando as pessoas a ter uma visão preconceituosa sobre os direitos humanos.” No fundo, complementa Adorno, é um controle social a partir de um monitoramento.
O limite entre monitorar e censurar é muito tênue, reconhece o professor. O governo federal de alguma maneira assinalou em várias oportunidades a vontade de criar um conselho, uma agência nacional, mas tanto a sociedade civil quanto os órgãos de imprensa têm resistido bastante à ideia, lembra.
A polêmica está na criação de um ranking para a mídia, que irá favorecer a promoção dos direitos humanos, como se tivesse de alguma maneira exercendo uma censura indireta. “Esse tema é muito delicado, suscita muitas resistências, que muitas vezes são legítimas e, ainda, contamos com experiências muito ruins na América Latina, com governos de direita ou de esquerda tentando controlar a mídia. Essa tentação de exercer controle é um perigo para a democracia. Por mais que qualquer um de nós possa até dizer que a imprensa exagerou, sempre resta ao cidadão o direito de reparação frente à justiça. A imprensa ética tem que garantir a liberdade e o direito de resposta e a Justiça deve garantir reparação em casos de humilhação moral, danos à integridade psíquica e identidade das pessoas.”
Homossexualismo – Outra polêmica do programa diz respeito à união civil homoafetiva, com a possibilidade de casais homossexuais adotarem filhos. A proteção dessa união civil já estava presente no segundo programa, não é novidade também. A legislação brasileira ainda não reconhece o casamento homossexual. A discussão na Justiça a respeito da seguridade do casal ainda é grande.
A descriminalização do aborto também estava contemplada nos outros programas e nunca deixou de ser polêmica. A novidade é que houve um deslocamento dessa descriminalização, partindo da esfera dos direitos da saúde para a dos direitos da mulher. No terceiro programa se fala diretamente que ter ou não filhos é uma escolha de direito das mulheres. “Como previsto, as reações foram enormes, desde várias religiões a segmentos da sociedade brasileira que acreditam ser a vida um bem a ser protegido a qualquer custo”, explica Adorno.
Para o professor, é muito importante que aconteçam essas polêmicas na sociedade para que se possa pesar os pontos favoráveis ou não, e colocar em discussão os diferentes pontos de vista. “Só assim a sociedade avança.”
Um fato importante a ressaltar é que, além de a sociedade brasileira caminhar, cada vez mais, para o progresso econômico, o avanço democrático e a modernização, ela também vem modernizando alguns comportamentos. Adorno exemplifica com a violência doméstica, que, embora continue com um índice alto, enfrenta hoje uma forte condenação pública, que no passado era tímida. “Hoje é vergonhoso um homem aparecer como espancador de mulher e filhos. Há uma condenação pública de maus tratos. Os governos estão assumindo mais o tema, fazendo campanhas para proteger as crianças e as mulheres. As mudanças estão ocorrendo lentamente, mas estão. Muitas vezes gostaríamos que a sociedade mudasse da noite para o dia, mas, se olharmos as sociedades mais liberais, veremos que foram quase cem anos de luta, e continuam com problemas”, ressalta.
Direito à memória – O mais polêmico dos pontos é a questão do direito à memória. Todas as convenções internacionais de proteção aos direitos humanos concordam com o direito à memória e à verdade sobre o que se passou durante as ditaduras – período em que cidadãos são perseguidos por suas convicções políticas e ideológicas. Para Adorno, o Brasil está com uma enorme dificuldade para resolver essa questão. E lembra: “Estamos comemorando 25 anos de retorno à democracia. O que foi isso? Por um lado, foi uma luta de vários setores da sociedade brasileira pelo retorno do Estado democrático de direito. É inegável afirmar que não foi uma entrega, e sim uma luta. Por outro lado, esse retorno foi negociado com setores das Forças Armadas, cujo núcleo duro tinha a firme intenção de manter a ditadura. Um dos argumentos para conseguir o Estado democrático de direito de volta foi garantir a não apuração dos fatos relacionados a esse momento”.
Em todas as sociedades em que a democracia se consolidou o acerto de contas foi inevitável, destaca Adorno. Não há como retornar a uma plena democracia se essas questões não forem resolvidas, acrescenta. “Esse tema sempre foi muito delicado. O governo sente dificuldade. Há setores que concordam em avançar e outros setores se referem à anistia e dizem que já foi feita a reconciliação, que não se tem mais que voltar ao passado. Essa ferida continua aberta e precisa ser fechada”, ressalta Adorno.
Para Adorno, trata-se de um estilo diferente de fazer política. Enquanto o PSDB é um partido que não tem tradição de ligação com os movimentos sociais, isso faz com que ele tenha maior liberdade e flexibilidade para dar formato político às demandas sociais. Já o PT, com uma forte ligação histórica com os movimentos sociais, recolhe as demandas da sociedade e procura avançar instituindo polêmicas. “Não se trata de fazer julgamento de qual governo é pior ou melhor, e sim de mostrar que os estilos são diferentes, principalmente porque o primeiro PNDH surgiu no governo FHC.”
A íntegra do Programa Nacional de Direitos Humanos pode ser consultada no endereço do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP (www.nevusp.org).
Programa tem origem em recomendação da ONU
Com o resultado da cúpula, o governo brasileiro, em 1996, resolveu editar um primeiro programa, um dos primeiros do mundo, atrás da Austrália e África do Sul. Após consulta à sociedade civil, o Ministério da Justiça, na época, consultou o Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP para coordenar seminários consultivos nacionais. Foram realizados eventos nas principais capitais brasileiras, com o objetivo de recolher propostas, abordando todos os aspectos possíveis dos direitos humanos, envolvendo não só as garantias, mas também a proteção de grupos em geral muito vulneráveis (crianças, mulheres, negros, índios, homossexuais e pessoas com outras preferências sexuais).
Todo esse material foi organizado pelo NEV num grande relatório e encaminhado ao Ministério da Justiça, que conferiu a ele um formato de programa, contendo 228 medidas. O texto foi editado em maio de 1996.
A ONU sugeria ainda duas coisas importantes: um monitoramento da execução das medidas e a elaboração de um relatório anual contendo os avanços e recuos. Sugeria também uma revisão periódica do plano com vistas a incorporar as novas demandas da sociedade.
O segundo plano, realizado em 2002, ampliou algumas questões não contempladas no primeiro programa, como os direitos dos GLBT – gays, lésbicas, bissexuais e transexuais. Deu ênfase maior à questão da desigualdade racial e apontou para a possibilidade de políticas de ação afirmativa, visando a reduzir as desigualdades raciais. Em linhas gerais, conservou todas as iniciativas do primeiro programa.
O terceiro programa é uma sequência dos anteriores, agora sob o governo Lula. Nas três versões, a intenção é a mesma: um conjunto de medidas que deve de alguma maneira articular os diferentes organismos do Estado – como empresas, secretarias, institutos, fundações e ministérios – na concepção de determinadas medidas, visando a que os direitos humanos sejam protegidos, respeitados e promovidos. (I. L.)
Por Izabel Leão ao Jornal da USP
0 comentários:
Postar um comentário