“Hoje em dia, quase tão importante quanto a 4a Frota são os canais de televisão a cabo que recebemos aqui. Eles realizam, de forma indolor, um processo de dominação muito eficiente. Despejam toda essa quantidade de esterco cultural... Estamos vivendo um momento grave do ponto de vista de uma cultura de esquerda. A crise dos valores do chamado socialismo real e a emergência desse lixo cultural nos últimos anos nos deixaram numa situação grave... vivemos uma transformação do ponto de vista econômico-social muito mais importante do que no passado. No entanto, temos um deserto de idéias, um deserto de produção cultural...”. Marco Aurélio Garcia – O Globo, 09/02/2010.
Este é um comentário terrível, que incomoda. Vale como um diagnóstico. Porque é verdade. Para entender esse estado lamentável, é preciso ir à raiz do problema. Sapeando ao acaso na rede, me deparo com uma entrevista de Noam Chomsky dada em 1996 (Consciência.net). Com simplicidade e precisão cegantes, ele descreve este invasor internalizado, infinitamente mais poderoso que a 4a. Frota. Ele diz:
“Atualmente as pessoas já não se interessam por política. Mas este é justamente o objetivo do neoliberalismo: eliminar a população do processo decisório e colocar tudo nas mãos do poder privado. É a imposição de uma espécie de totalitarismo privado. Quanto mais se diminui a participação popular e coloca as decisões nas mãos dos bancos, corporações privadas, FMI, etc., menos espaço resta às pessoas para tomarem decisões. E elas perdem o interesse. Como se consegue isto?
Através de técnicas de marginalização e atomização, incluindo a imensa ofensiva da indústria de diversões, relações públicas e propaganda para privatizar os interesses. Nos EUA, um em cada seis dólares é gasto em marketing. Quem assiste à televisão é bombardeado com publicidade e propaganda o tempo todo desde a infância. As crianças passam muitas horas diante da TV, sendo formadas pelos ideais da cultura de consumo, de acordo com os quais sua única preocupação é com você mesmo, e sua máxima escolha se restringe entre uma marca de tênis ou outra. O mundo da cultura de mercado cria uma sociedade na qual você se relaciona unicamente com seu aparelho de TV e seu computador. E só.
(Eis porque o mundo da cultura de mercado produz idiotas, ou seja, “idiota” é uma palavra que vem do grego que significa “aquele que está sozinho”).
Nos EUA, desde os anos 80, os salários reais estão estagnados ou em declínio. Razão pela qual, marido e mulher precisam estar juntos no mercado de trabalho para manter a família. Temos os pais trabalhando até 50 horas por semana e não há, como na Europa ou no Japão, um sistema social de apoio à família. Então as crianças ficam sozinhas e só veem televisão. Os efeitos disso são catastróficos. Se você olhar as estatísticas de crime juvenil, drogas, pobreza e violência contra crianças, encontra uma incidência muito maior nos EUA e na Inglaterra. São países que, até certo ponto, aplicam o modelo que tentam impor ao resto do mundo. Não o aplicam totalmente porque conhecem seus efeitos devastadores, contudo o aplicam contra seus (deles) pobres.
E pobres submetidos a esse tratamento – seja onde estiverem – ficam como os pobres do Brasil (grifo meu!). E este fenômeno mundial é o efeito da aplicação sistemática do programa neoliberal. Como se rompe com esse modelo?
Bem, a primeira coisa a fazer é reconhecer que o neoliberalismo é uma fraude total. Neoliberalismo é para os pobres, proteção do Estado para os ricos. Por isso o Primeiro Mundo é rico e o Terceiro Mundo, pobre. Em todo o mundo as pessoas estão insatisfeitas, procurando alternativas, porque houve um certo sucesso na destruição da organização social. Há toda uma (falsa) cultura da “individualidade”, cujo objetivo é separar os indivíduos. E, a menos que a mídia seja democratizada, será muito difícil mudar a cabeça das pessoas.”
Pois é, em 1996, em plena gestão FHC, nossas crianças pobres eram paradigmáticas do pior que pudesse existir no planeta – o ponto máximo da acumulação de toda miséria e toda injustiça humanas. Consequentemente, de lá para cá, no espaço da cultura, produziu-se o deserto.
*Márcia Denser é uma escritora paulistana. Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUCSP, é pesquisadora de literatura, jornalista e curadora de Literatura da Biblioteca Sérgio Milliet em São Paulo.
fonte: Congresso em Foco
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