A relatora especial da ONU para o Direito à Moradia, Raquel Rolnik, critica o fato de os governantes jogarem a responsabilidade das tragédias no Rio sobre as suas maiores vítimas: “Ninguém mora numa área de risco porque acha bacana, lindo, agradável”. Confira abaixo a entrevista dada ao Terra Magazine.
Terra Magazine – Mais uma vez, a chuva provocou caos e mais de noventa mortos. Os governantes culpam os moradores que habitam áreas de risco…
Raquel Rolnik - A primeira questão fundamental é que jogar a responsabilidade sobre as vítimas da tragédia me parece um contrassenso, como se morar num lugar de risco fosse uma opção. Não é uma opção. É uma falta de opção, porque as políticas urbanas brasileiras jamais pensaram de forma planejada qual é o local adequado para que a população pudesse morar. E na ausência desse local adequado, a população se instalou em locais impróprios para urbanizar e para ocupar. Ninguém mora numa área de risco porque acha bacana, lindo agradável, elas moram porque as áreas melhor servidas de infra-estrutura estão bloqueadas para a população de menor renda.
A segunda questão – não se refere apenas à baixa renda, mas também às classes mais altas – uma série de loteamentos abertos e o próprio sistema viário urbano estão instalados em áreas impróprias. Por exemplo, todo o sistema de vias expressas da capital de São Paulo está instalado sobre as várzeas inundáveis dos rios, essa também foi uma decisão política, de aumentar as várzeas e canalizar os rios, para aumentar o potencial imobiliário e lotear e rentabilizar essas áreas.
O preço que nós estamos pagando por isso são vidas que estão sendo perdidas, além da enorme prejuízo em função do colapso na circulação, na mobilidade e os efeitos que isso causa.
Esse processo é mais ou menos intenso na cidade do Rio de Janeiro? A cidade teve quase uma centena de mortos em 24 horas…
Realmente teve uma intensidade muito maior no Rio, mas se você for comparar o modelo de desenvolvimento e de ocupação do território no Rio e em São Paulo ele é muito semelhante. O modelo do Rio é um paradigma e, infelizmente, é um paradigma dominante.
Quando em situações de extremo risco já consolidadas, existem algumas alternativas, como no caso de Pernambuco e de Belo Horizonte, que trabalham num gerenciamento das áreas de risco, aumentando a capacidade de defesa; melhorando o sistema de alerta; introduzido algumas garantias que têm impedido um número elevado de mortes. Um programa em parceria com a prefeitura do Recife e o governo do Estado chamado Viva o Morro tem conseguido evitar as mortes num momento de crise como essa. Existem políticas que evitam tragédias piores. Mas isso não é solução para o problema, a solução definitiva é ampliar o acesso a terra bem localizada para população de baixa renda. Ponto.
Quais ações podem minimizar ou extinguir as ocupações irregulares em áreas de risco?
Quando se fala em intervenções nas áreas de risco, se fala em remoção, mas a remoção é uma das possibilidades, uma possibilidade extrema. Existem várias situações possíveis para que o risco seja minimizado, mesmo em áreas com maior vulnerabilidade.
A boa notícia é que no PAC 2, depois de muita luta, foi decidido – isso antes do Rio, mas depois das tragédias em São Paulo e em Angra dos Reis – pela primeira vez, a gente tem 10 bilhões de reais disponíveis para implementação de políticas de redução de risco. Há muitos anos, dentro do próprio Ministério das Cidades, existe um programa que tinha conseguido financiar apenas planos, mas nunca conseguiu recurso para implementar esses planos. Agora, finalmente, está saindo esse recurso significativo, mas num universo, evidentemente, muito menor do que a demanda.
O que a remoção inadequada de pessoas em área de risco pode ocasionar?
Me preocupa muito essa culpabilização das vítimas articulada com a ideia de remoção como única alternativa. Para onde vão essas pessoas que eventualmente serão removidas? Uma comunidade em uma cidade de Minas Gerais localizada sobre uma fenda geológica onde aconteceu um terremoto foi integralmente removida desse local para um novo local. Para onde ela foi? Foi pra periferia da cidade, mas essa era uma comunidade rural, que vivia de agricultura familiar. Do quê essas pessoas iriam viver na periferia da cidade? Evidentemente, elas voltaram pro lugar.
Casa não é quatro paredes e um teto, e pessoa não é uma coisa que você arranca de onde ela tem a vida, de onde ela tem um emprego, de onde os filhos estudam, de onde ela tá há cinquenta anos e enfia ela num lugar onde ela não tem nada a ver.
O direito à moradia adequada inclui não apenas uma casa segura, num lugar seguro, mas que lugar? Com acesso ao quê? E em que condição para poder sobreviver com dignidade? Eu não estou dizendo que não deve remover, eu estou dizendo que deve ser respeitado o direito à moradia adequada durante as remoções.
(*) Entrevista publicada originalmente no Terra Maganize.
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