O Ministério Público Federal no Pará (MPF/PA) ajuizará amanhã, 8 de abril, ação civil pública na Justiça Federal de Altamira, pedindo a anulação da licença prévia da usina hidrelétrica de Belo Monte, concedida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Os procuradores da República que analisaram o empreendimento apontam afronta à Constituição, às leis ambientais e às resoluções do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) entre os oito problemas encontrados no licenciamento até agora.
O MPF também quer o cancelamento do leilão marcado para o próximo dia 20, porque o governo desobedeceu uma das exigências do Conama para licitação de usinas hidrelétricas. O projeto só pode ir a leilão depois que for emitida licença de instalação, nunca apenas com licença prévia. É o que diz a Resolução nº 06/1987, claramente desobedecida pela urgência de vender Belo Monte ainda em 2010.
Os pedidos para a Justiça incluem também uma proibição para o Ibama, para que qualquer nova licença só seja concedida se corrigidos todos os vícios e dúvidas apontados no processo de licenciamento. O MPF irá, ainda, notificar oito pessoas jurídicas potencialmente interessadas no empreendimento a respeito dos termos da ação para que evitem cooperar com os danos e ilegalidades descritos, porque podem ser considerados co-responsáveis. Entre os notificados, o BNDES e as três maiores empreiteiras do país (veja lista abaixo).
O MPF descobriu, analisando o material do Ibama, que os próprios técnicos do governo deixaram claro, em vários documentos, seu desconforto com a falta de dados científicos que garantissem a segurança ambiental do projeto. A pressa em conceder a licença atropelou não só ritos legais e princípios democráticos, mas atentou contra o postulado da precaução, essencial para evitar desastres ambientais.
Dentre as principais dúvidas está o respeito à biodiversidade e à sobrevivência da população da chamada Volta Grande do Xingu, um trecho de 100 quilômetros do rio que vai ser desviado para produzir energia na barragem. Uma das principais questões do licenciamento de Belo Monte diz respeito à quantidade de água que vai ser liberada para “irrigar” esse trecho, batizado pela Eletrobrás de Trecho de Vazão Reduzida.
Pela proposta inicial da Eletrobrás, esse trecho, onde moram pelo menos 12 mil famílias, incluindo os povos indígenas Arara e Juruna, seria irrigado com 4 mil metros cúbicos por segundo, ou 8 mil m³/s, em anos alternados. Os técnicos do Ibama consideraram 4 mil m³/s uma quantidade irrisória de água, que poderia comprometer a vida na região. E acabaram por emitir a licença condicionada a um teste: durante seis anos, serão liberados 8 mil m³/s e, ao fim desse período, os danos ambientais serão reavaliados.
Testes – “O Ibama fala em testar um hidrograma com essa quantidade de água, mas o meio ambiente e a vida da população do Xingu não tem como depender de testes. Se não há certeza científica sobre o projeto, ele não deve ser levado adiante. Isso é um princípio ambiental do qual a sociedade não pode abrir mão”, diz o procurador da República Cláudio Terre do Amaral, de Altamira, um dos responsáveis pela análise.
Para piorar o cenário para os moradores do Xingu, técnicos do MPF demonstraram que nenhuma das duas fórmulas – nem a do Ibama, nem a da Eletrobrás – condiz com a realidade. Eles analisaram o volume de água do Xingu em uma série histórica de 1971 a 2006. Consideraram que as turbinas só irão gerar energia se, por elas, passarem 14 mil m³/s de água. Somaram a esse volume os 8 mil m³/s exigidos pelo Ibama para chegar ao volume de 22 mil m³/s, o necessário para conciliar energia e manutenção da vida. O MPF descobriu que, nos 35 anos observados, em 70% do tempo o rio não foi capaz de alcançar esse volume nem na época de maior cheia.
“Se o Xingu não tiver água suficiente para gerar energia e, ao mesmo tempo, manter o volume exigido pelo Ibama, nos perguntamos o que será sacrificado, se a geração ou a vida das populações. Com uma dúvida dessa magnitude, como o empreendimento pode ser considerado viável?”, questiona-se o procurador da República Ubiratan Cazetta.
Pouca água ou água de má qualidade – Além da ameaça de, literalmente, faltar água para a vida na Volta Grande, na análise dos documentos do licenciamento fica evidente outra dúvida científica igualmente grave, quanto à qualidade da água no trecho do rio que vai ser transformado em lago.
Em documento que entregaram ao Ibama no dia 27 de janeiro, quatro dias antes da emissão da licença prévia, especialistas da Universidade de Brasília ressaltaram que era necessário mais tempo para concluir sobre a qualidade da água depois da construção, por haver evidências de toxicidade para peixes e humanos.
“Os analistas são de opinião que não haja nenhuma decisão no momento em relação ao empreendimento e sugerem que seja dado um tempo maior para a realização de qualquer futura análise”, dizem no documento. Mas foram ignorados pelo Ibama que, na licença, colocou a questão como uma das condicionantes mais vagas: “Deverá ser garantida a qualidade da água”.
Não foram só cientistas da UnB que foram ignorados. Num esforço inédito, 39 cientistas de várias instituições brasileiras se reuniram para analisar criticamente o empreendimento de Belo Monte e apresentaram ao Ibama, durante as audiências públicas, um arrazoado de conclusões que não foram levados em consideração. “Não analisamos as contribuições das audiências públicas”, admitiram os técnicos em um dos últimos documentos emitidos antes da licença.
Sem precedentes – O MPF aponta também o desrespeito ao artigo 176 da Constituição, que determina que aproveitamento de potencial hidráulico em terras indígenas só poderá ser feito se houver lei específica regulamentando a questão. O legislativo brasileiro nunca tratou do tema. E, até agora, o governo brasileiro nunca tinha tentado fazer aproveitamento de potenciais hídricos em terra indígena
“Belo Monte é, também desse ponto de vista, um empreendimento sem precedentes. E, para o MPF, nada pode continuar enquanto não se cuidar das lacunas legais. O aproveitamento hidrelétrico em terras indígenas está na mesma categoria que a exploração mineral. Não podem ser autorizados enquanto não se regulamentar esses temas”, explica o procurador da República Bruno Gutschow, de Altamira.
Para o MPF, ao liberar a licença ambiental com tantas dúvidas e riscos, o governo resolveu apostar e deixar para apurar depois se o empreendimento é de fato viável. “Isso significa, de modo inconstitucional, prestar absoluteza ao princípio do ‘desenvolvimento econômico’ e ignorar vigência ao princípio constitucional do desenvolvimento sustentável”, diz a ação civil pública que a Justiça vai conhecer amanhã.
A ação é a primeira consequência da análise que seis procuradores da República fizeram sobre os documentos do licenciamento, os fundamentos legais e as consequências da obra para as populações indígenas e não-indígenas do rio Xingu. O grupo continua analisando os documentos do empreendimento e novas ações judiciais não estão descartadas.
Veja abaixo, uma por uma, as irregularidades encontradas até agora pelo MPF:
1 – É a primeira vez que um empreendimento afeta diretamente terra indígena, aproveita recurso hídrico de terras indígenas e a Constituição exige, no artigo 176, que esse tipo de aproveitamento só poderá ser autorizado pelo poder público após edição de leis ordinárias regulamentando a questão, o que não existe no ordenamento jurídico brasileiro.
2 – A equipe de técnicos que fez o licenciamento consignou em um dos documentos públicos: “Não foi feita análise das contribuições das audiências públicas”. A Constituição Federal determina que o Brasil, enquanto estado democrático de direito, deve garantir a participação popular. E no caso de um licenciamento, essa participação não pode ser meramente formal. Fazer audiência pública e ignorar o que o público disse é contrário aos princípios democráticos. No caso específico de Belo Monte, ignorar a sociedade é ainda mais lamentável porque, pela primeira vez, cientistas de várias instituições se reuniram para analisar o projeto e contribuir com o licenciamento, mas não foram considerados devidamente.
3 – Princípio da precaução: na dúvida sobre impactos graves, o empreendimento não pode ser executado. Belo Monte deixou dúvidas quanto ao hidrograma previsto para os 100 km da volta grande que serão afetados pelo desvio do rio. A Eletrobrás propôs inicialmente uma vazão que seria de até 4000 m³/s em um ano, e de 8000 m³/s no ano seguinte. O Ibama condenou esse hidrograma. Mas tampouco tem certeza sobre o hidrograma que propôs, qual seja, de 8000 m³/s em todos os anos. O Ibama fala em “testar” essa vazão durante seis anos e depois avaliar os impactos. Não é possível fazer “testes” desse tipo quando se trata de questão ambiental, ou se tem certeza do que vai acontecer ou o projeto não pode ir para frente.
4 – Qualidade da água: outra incerteza que fica evidente na análise dos técnicos do Ibama é sobre a qualidade da água se a usina for construída. Em vários pontos, os responsáveis pelo licenciamento se dizem preocupados com projeções de toxicidade para humanos e peixes. Falam em “impacto de grande magnitude possivelmente irreversível”. Em parecer do dia 27 de janeiro (quatro dias antes da licença ser concedida), especialistas da Universidade de Brasília recomendaram que se aguardasse mais tempo antes de qualquer decisão sobre o empreendimento, para que novas análises sobre o tema pudessem ser feitas. Os próprios analistas do Ibama, em 29 de janeiro, portanto dois dias antes da emissão da licença, reconheceram a falta de dados e disseram que o tema estava pendente. Mesmo assim, a licença foi concedida e a questão entrou como condicionante.
5 – Obrigação de avaliar medidas mitigadoras. Uma vez identificados os impactos negativos, o governo só pode liberar um empreendimento se analisar as medidas propostas pelo empreendedor para mitigar ou compensar esses impactos. Resolução do Conama especificamente determina isso. No caso de Belo Monte, as medidas de compensação não foram apresentadas antes da licença prévia. Se, por exemplo, as barragens começarem a formar poças no leito do rio e a população de mosquitos se proliferar, ninguém tem um plano para evitar o aumento dos casos de malária.
6 – Trecho de Vazão Reduzida. O MPF analisou dados da Agência Nacional das Águas que demonstram que são inconciliáveis os interesses econômicos/energéticos e ambientais. O rio Xingu, em 35 anos analisados, só alcançou 22 mil m³/s de volume em 6% dos dias. Se são necessários 14 mil m3/s para produzir energia e, pelo menos, 8 mil m³/s para manter a vida nos 100 km do trecho de vazão reduzida, fica evidente que a usina vai impor uma escolha absurda: ou se sacrifica a Volta Grande ou se sacrifica a geração de energia.
7 – Desobediência à Resolução nº 006/1987 do Conselho Nacional do Meio Ambiente. A resolução do Conama é auto-explicativa. Leilão, só depois da licença de instalação. O governo não esperou e agora poderá ser obrigado pela Justiça a cumprir a regra do jogo.
8 – Necessidade de reedição da Declaração de Reserva de Disponibilidade Hídrica. A Agência Nacional das Águas tem que “conceder” a água necessária para a geração de energia, porque se trata de um bem público. A ANA deu a concessão antes da licença prévia e, portanto, esse documento não prevê o hidrograma que foi alterado pelos técnicos. Seria necessária uma nova concessão da ANA, com as mudanças previstas pelo Ibama.
Informe da Procuradoria da República no Pará, publicado peloEcoDebate, 08/04/2010
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