O terremoto do Haiti, país visitado hoje (25) pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi mais um prato cheio para a mídia internacional, dizem pesquisadores brasileiros que testemunharam a tragédia ao vivo. Pela TV, em jornais, revistas e na internet, cenas impactantes de desespero, prédios desabando, resgates surpreendentes e pessoas disputando comida foram exibidos para que o público se impressionasse com a barbárie das atitudes do povo haitiano.
Mas a verdade, segundo eles - reunidos em um debate na USP (Universidade de São Paulo) nesta quinta-feira -, é que os fatos não aconteceram desta forma. A ânsia da mídia mundial pelo drama fez as coberturas jornalísticas se limitarem às cenas de horror e ao show da ajuda internacional, aviões carregados de mantimentos e soldados da ONU retirando sobreviventes.
De acordo com o pesquisador Otávio Calegari, da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) em missão no Haiti desde antes do terremoto, dois dias depois do abalo a imprensa anunciava o envio de 16 mil soldados ao local "em missão humanitária". Mas, nas ruas, não se via nenhum soldado da Minustah (Missão de Paz das Nações Unidas no Haiti). Segundo Calegari, eles estavam ocupados em remover os escombros dos hotéis de luxo onde se hospedavam estrangeiros ricos.
“Era a frágil polícia haitiana que se articulava para proteger supermercados, pequenos grupos de mulheres que organizadamente tentavam manter a calma e reunir desamparados, médicos e escoteiros haitianos que prestavam socorro às vítimas e organizações locais que se preocupavam com a distribuição de alimento”, contou.
A distribuição de mantimentos, que não foi suficiente nem eficaz, provocou desespero na população. Na opinião do antropólogo Omar Ribeiro Thomaz, que também estava no local na data do terremoto, o problema foi de responsabilidade da ONU, que não soube lidar com a situação caótica. Mesmo assim, afirma, os poucos casos de violência, tumulto ou vandalismo divulgados foram isolados.
“Os soldados iam às praças onde haviam milhares de desabrigados e simplesmente descarregavam caixas de alimentos. Uma vez, vi um helicóptero jogar aleatoriamente garrafas de água de uma altura que chegava a machucar quem estava embaixo. Ao lado, havia câmeras da rede CNN registrando o desespero da população em pegar tudo que era lançado. Em casos como esse, a disputa é instintiva: se você não tem nada para comer, nada para beber e de repente chega alguma coisa, é natural que todos vão para cima”, relatou Thomaz.
Apesar disso, o que predominou foram as demonstrações de solidariedade e cooperação entre os próprios haitianos, ao contrário do que a mídia se preocupou em mostrar. “Foi tudo muito extraordinário. A população local usava da fé para manter a calma e se ajudar. De noite, ouvíamos cantorias religiosas e, à medida que a terra tremia, o volume das vozes aumentava e as pessoas ficavam cada vez mais ligadas umas às outras”, contou Calegari.
Os pesquisadores não viram a mesma atitude entre os "capacetes azuis". “Não existe laço algum entre a ONU e outras organizações internacionais e a população. Mas o povo haitiano é capaz de se mobilizar e sair de uma situação dessa, foram eles os responsáveis pela única revolução negra e escrava vitoriosa no planeta”, lembrou Eduardo de Almeida, membro do diretório nacional do PSTU e também pesquisador sobre Haiti.
Para Calegari, a força da população é intensificada porque existe uma consciência do abandono. “Eles não esperavam nada. Ao longo dos anos, estabeleceram uma relação de indiferença com a Minustah e, por isso, sabem que estão sozinhos; que, se não fizerem nada por eles mesmos, ninguém vai fazer”.
Imagens erradas
Omar Ribeiro Thomaz acrescenta que as organizações locais estão se articulando independente da ajuda internacional e de uma forma mais efetiva. “A ONU, em vez de atrasar a distribuição de mantimentos, poderia vincular-se a essas organizações, mas a ONU é racista e não acredita no potencial de associação de pretos haitianos”, acusou.
Além da espetacularização das cenas de barbárie, a mídia se aproveitou da dificuldade das operações de resgate para emocionar o mundo com a cobertura ao vivo do salvamento de vidas, que foi extremamente limitada. Estatísticas mostram mais de 200 mil pessoas morreram no terremoto, e ao todo apenas 150 foram resgatadas dos escombros.
Segundo Almeida, diferentemente do que se viu no Brasil e outros lugares do mundo em que a cobertura jornalística estava alarmada para a catástrofe, não foi o povo haitiano que demonstrou individualismo e agressividade - ao contrário, foi a comunidade internacional que demorou, se limitou e não se organizou no envio e distribuição de recursos.
Ação internacional
Presente no território haitiano desde 2004 com o objetivo de liderar a missão humanitária, o grupo de soldados do Brasil foi reforçado após o terremoto, o que reacendeu a discussão sobre seu papel e sua atuação.
“O terremoto revelou que o que ocorre no Haiti não é consequência de uma catástrofe natural, e sim efeito de uma sucessão de fatos políticos e históricos. A situação do país foi apenas agravada pelos tremores ocorridos em janeiro, e não criadas em função dele”, lembrou Thomaz.
De acordo com os pesquisadores, não há dúvidas da necessidade de ajuda financeira e humanitária vindas de outros países. O problema é como esses recursos chegam à população. “De dez em dez minutos, ouvíamos aviões pousando com ajuda internacional. Mas, na prática, esta ajuda não chegava até as pessoas. Os alimentos não eram distribuídos, os médicos não atuavam e todos continuavam naquela situação de calamidade. Mesmo assim, ainda havia respeito", disse o antropólogo.
Além da demora e dos impasses para a distribuição, há também uma limitação nas doações. “Durante os cinco anos de ocupação no Haiti, a ONU gastou cerca de 3,5 bilhões de dólares. Agora, oferece apenas 100 milhões para a recuperação do país. O mesmo aconteceu com o governo brasileiro: 600 milhões de dólares foram gastos com as tropas de ocupação e apenas 15 milhões cedidos pós-terremoto”, afirmou Eduardo de Almeida.
Contra a falta de empenho político, os pesquisadores só podiam oferecer atos individuais de solidariedade. "Eu tive a sorte de conseguir comprar 15 galinhas para alimentar os que estavam comigo. Andei vários quarteirões até onde estava hospedado e, nesse percurso, nenhuma pessoa sequer me abordou para pedir, disputar ou roubar a comida”, relatou Omar Ribeiro Thomaz.
Já os Estados Unidos disponibilizaram aproximadamente 100 milhões de dólares como auxílio - mesmo valor dado para a cidade de Nova Orleãs, atingida em 2005 pelo furacão Katrina. A diferença é que o número de vítimas nas duas situações não foi equivalente: durante o furacão, 2 mil pessoas morreram.
fonte: Opera Mundi
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