Os sem-teto vivem uma vida dupla: enquanto militantes do movimento e enquanto trabalhadores comuns. “Tem muita gente que acha que sem-teto só faz baderna; sem-teto é trabalhador”. Por Passa Palavra
O terreno em Taboão da Serra, município da Grande São Paulo, desde o dia 29 de março deste ano reocupado pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, já havia sediado entre os anos de 2005 e 2006 o acampamento “Chico Mendes”, organizado pelo mesmo movimento. Naquela ocasião, após 8 meses de resistência, o proprietário do terreno obteve a reintegração de posse e obrigou as famílias a desocuparem o local. Foi quando aproximadamente 350 bolsas-aluguel foram conquistadas; número insuficiente para contemplar, ainda que temporariamente, todos aqueles que ansiavam alcançar o direito à moradia digna. De lá para cá, o terreno ficou completamente abandonado. Consta que o lugar vinha sendo usado para a prática de todo tipo de brutalidade, causando, obviamente, muita preocupação aos moradores da região.
É neste contexto que surge o novo acampamento ”Che Guevara”, formado tanto por famílias sem-teto que atuaram no momento anterior e não tiveram seus problemas resolvidos desde então, quanto por outras recém-chegadas ao movimento - algo que tende a crescer em função das profundas transformações por que têm passado as grandes cidades brasileiras, em particular a região metropolitana de São Paulo.
Uma das participantes desse novo processo é dona Alcina Borges Ribeiro, 48 anos, que nasceu na Bahia e veio para São Paulo em 1986. Até bem pouco tempo atrás, ela trabalhava como cozinheira em um restaurante da cidade; já havia participado de outras lutas do movimento, mas nunca teve oportunidade de se dedicar totalmente por conta dos horários do trabalho. Hoje largou o emprego e passou a cozinhar em uma das três cozinhas coletivas do acampamento “Che Guevara”. “Agora eu vim de cabeça pro movimento”, diz ela, certa de sua opção.
Enquanto mostra a cozinha que coordena, a única com geladeira, ela conta que pela primeira vez participou do ato da ocupação do terreno, no final do mês de março lá em Taboão. Segundo ela “é uma festa linda, chega todo mundo junto, é rapidinho, uns jogam o lençol no chão, outros já esticam a lona e começam a montar os barracos”. Ela descreve que foram cerca de uns seis ônibus que se dirigiram ao terreno, “mas se tivesse mais ônibus tinha mais gente, porque tem muita gente morando de aluguel, muita gente na luta”.
No dia da ação, alguns cuidados são fundamentais para a segurança dos militantes, como, por exemplo, não se usar telefones celulares [telemóveis] durante o deslocamento para o lugar a ser ocupado. O sigilo sobre o endereço exato do local também garante que informações não vazem, o que faria a polícia chegar antes mesmo da ocupação acontecer. Dessa forma, a maioria dos militantes segue para o terreno onde fincarão seus barracos sem saber de fato aonde é que irão se abrigar; tudo para garantir a própria segurança.
Depois de adentrado o terreno e da veloz montagem de barracos de lona preta e de bambu é que conseguem se reunir para a coordenação passar alguns informes gerais. De acordo com dona Alcina, as pessoas já são alertadas sobre os cuidados que devem ter. “Tem muita gente que é do movimento, mas muita gente que não é, que é a primeira vez e não tá acostumado; aí eles avisam do perigo de cobras no meio do mato e pra todo mundo andar sempre junto também por causa dos buracos”.
Nessa reocupação do terreno de Taboão, segundo Nildo, um dos coordenadores do movimento, passou-se mais de um mês sem que o dono da propriedade entrasse com algum processo na justiça, algo realmente atípico nesse tipo de ação. Sendo assim, a visita da polícia foi tranqüila, já que não tinha nenhum mandato de reintegração de posse. “Estamos dando sorte, é a primeira vez que ficamos mais de 15 dias sossegados”.
Para a maioria das famílias, evidentemente, morar numa ocupação tem seus lados difíceis. Mas muitos vieram da roça, do semi-árido nordestino, e já passaram por poucas e boas numa cidade como São Paulo, por isso só agradecem por estarem hoje num acampamento. A história de Dona Lucinete, que cuida da terceira cozinha coletiva da ocupação é exemplar nesse sentido. Ela conta que veio de Pernambuco com seus dois filhos e uma sobrinha para procurar seu irmão, mas ele havia mudado de endereço e ela não tinha então para onde ir. Teve que morar na rua, embaixo de uma mesa coberta com jornal. Aos poucos foi fazendo sua vida, sempre pagando aluguel, até que se viu desempregada, com o marido doente e despejada por falta de pagamento do aluguel: um cantinho que conseguira no Jardim Marcela, Campo Limpo, zona sul. Foi quando, no mesmo dia, ouviu dizer sobre a ocupação que o movimento estava fazendo pelas imediações. Não pensou duas vezes. Com o pouco dinheiro que tinha, pagou um pequeno carreto para levar todas as suas coisas direto para a ocupação. Chegando lá com três crianças, marido e todos os seus pertences, foi muito bem recebida, “agora eu tô no paraíso”, diz ela. Sua luta continua até hoje, só que, atualmente, “ao lado de uma grande família”, conta dona Lucinete emocionada.
De qualquer forma, problemas cotidianos como viver sem água e luz elétrica complicam a vida das famílias. Os banheiros coletivos, durante a noite, sem luz, são pouco acessados, sobrando assim espaço para alternativas como um galão de água de 20 litros cortado, dentro do próprio barraco, para as necessidades mais urgentes. Entre os moradores, o banho gelado é uma unanimidade quando se procura saber a respeito das maiores dificuldades. O pessoal da cozinha também batalha bastante para dar de comer a todos os seus companheiros. Apenas uma cozinha, a primeira, mais próxima de um prédio abandonado de onde conseguem puxar alguma energia, é que pode armazenar alguns alimentos na geladeira. Nas outras duas, tem fogão de duas bocas, gás, mas não luz elétrica.
Boa parte da vizinhança parece aprovar a nova moradia dos sem-tetos. No terreno onde estão existem dois prédios abandonados, de construção inacabada. Aquele cenário inóspito preocupava muito mais a vizinhança do que o de agora, com a chegada dos novos moradores. Isso porque antigamente havia uma grande quantidade de assaltos naquela região, além de estórias como a de um menino que fora morto em um desses prédios. De acordo com dona Alcina, “a gente trouxe mais vida pra esse lugar, que agora é movimentado, que tem trabalhador entrando e saindo e que só tá querendo sua moradia”. Muitos vizinhos chegaram até visitar a ocupação, “eles têm curiosidade de conhecer como são as coisas aqui dentro”, explica ela.
Contribuindo com a nova dinâmica do local, existe também um pequeno comércio, que já começa a se formar na calçada do lado de fora da ocupação. Aliás, algo importante de se reparar é que não existe relação de venda no acampamento. “Aqui tudo é coletivo, ninguém compra nem vende nada aqui dentro”, relata um dos coordenadores do lugar. Mas já que sem-teto não vive só de moradia, eles precisam se manter e, assim, o comércio segue crescendo, vendendo miudezas como cigarros, refrigerantes, bebidas alcoólicas (outro item também proibido dentro da ocupação), bolachas, balas [rebuçados], chicletes, etc.
Os sem-teto do acampamento “Che Guevara” vivem uma vida dupla: enquanto militantes do movimento e enquanto trabalhadores comuns. “Tem muita gente que acha que sem-teto é vagabundo, que só faz baderna, que quer invadir terreno dos outros e não faz mais nada da vida. Sem-teto é trabalhador”, afirma Nildo, que é vendedor ambulante no centro de São Paulo.
Como ele existe mais uma porção no acampamento, vivendo de bico [biscates], trabalhando como doméstica em casa de família ou trabalhando em obra na construção civil. O filme a gente já conhece: pouca escolaridade, pouca oportunidade e cada vez menos chances de vínculos empregatícios que lhes garantam alguma estabilidade. Por isso o aluguel é um dos grandes problemas.
Nildo conta que um dos principais desafios do movimento, hoje, é pensar formas de auto-sustentação, que dêem alguma autonomia para os assentados. “Nós produzimos vídeos, camisetas, bandeiras e esse dinheiro é revertido pra luta, mas isso é muitíssimo pouco”.
Quando muitas dessas famílias entram para o movimento, em busca de moradia, descobrem um novo mundo. Porém as contradições também são inúmeras. A falta de um emprego estável permite que alguns possam se dedicar mais para a luta, mas, quando se consegue um emprego com horários fixos e outras exigências, tem de se diminuir a intensidade de participação no movimento. Por outro lado, é preciso estar na luta para se conseguir uma casa. E, quanto a isso, Guilherme, coordenador geral do movimento, é categórico: “quem não luta não ganha”.
Também por isso, muitos militantes se dedicam ora com mais intensidade, ora com menos. A esse respeito todos dizem a mesma coisa, “você sempre acaba voltando pro movimento”. Para os moradores do acampamento, dentro de uma ocupação as pessoas podem viver de modo diferente, se relacionarem de uma outra forma. “Você aprende a viver junto, você aprende a solidariedade, se preocupa com o coletivo, e isso a gente não tem lá fora”, conta uma das moradoras.
Nildo, que está há quatro anos no movimento, diz que uma de suas primeiras lições foi sobre a propriedade privada. “Quando você chega dentro de um terreno, o que você quer é garantir logo o seu cantinho. Montei meu barraco e já cerquei todo ele em volta, aqui é meu. Depois chegou o pessoal conversando com a gente, explicando que a idéia não era cercar, e aí é muita história que faz a gente ver o mundo todo diferente”.
Apesar de tudo, com as contradições entre a vida na luta e a vida no trabalho, muitas famílias se dividem, acabam ou se refazem. De acordo com Liu, coordenadora do movimento e do setor de educação dentro da ocupação, a vida de militante é muito dura, “muitas vezes você tem que ficar longe dos seus filhos, acha que vai se estabilizar numa ocupação, consegue vaga pras crianças na escola e, quando vê, já tem que sair de novo e começar tudo outra vez”. Ela, que durante o acorrentamento em frente ao prédio do presidente Lula ano passado teve que ficar longe de toda a sua família sem mesmo poder falar com eles ao telefone.
Por conseguinte, uma prática importantíssima dentro da ocupação é a ciranda. Algumas mães que não trabalham se revezam tomando conta dos filhos dos demais companheiros para que os pais consigam trabalhar, já que conseguir vaga numa creche não é tarefa fácil e, na maioria das vezes, esbarra-se no problema do comprovante de residência normalmente exigido pela escola.
As cirandas são uma proposta alternativa de educação popular. Nelas as crianças podem brincar à vontade, aprendendo a se relacionar no coletivo, visto que os brinquedos, vindos de doação em sua maioria, são do uso de todos. Eles passam o período da tarde, depois do almoço, num barracão coletivo, com sofás, livros e brinquedos, tomam um lanche no fim do dia e voltam entre as 18h e 19h para seus próprios barracos.
Dessa maneira, a ocupação tem uma lógica interna de funcionamento, sendo organizada em várias coordenações. O acampamento “Che Guevara”, por exemplo, segundo Liu, é dividido em seis coordenações. A infra-estrutura é responsável pelo planejamento e disposição dos barracos. Nesse momento, é o pessoal que ajuda com o fornecimento de material e divide os lotes para o barraco de cada morador. A de abastecimento calcula a quantidade dos alimentos e tenta garantir que as doações sejam suficientes para todos comerem. A coordenação de educação cuida das crianças até 12 anos e organiza a ciranda. A de cultura é empreendida pelos jovens acima de 12 anos que tocam [organizam] os saraus e outros eventos culturais. A coordenação de apoio, que já fora um dia chamada de disciplina, tem a ingrata tarefa de cuidar dos principais problemas que podem surgir dentro de uma ocupação, como alcoolismo, drogas, brigas. Segundo dona Alcina, eles se dividem em turnos, “ficam de 6 a 8 homens e uma mulher em volta da fogueira, vigiando; eles passam de barraco em barraco pra ver se tem algum problema e conversam com as famílias”. A coordenação de grupo é formada pelos coordenadores de cada rua (no caso dessa ocupação são 20 ruas, até o momento) e tem a função de resolver dúvidas dos moradores de cada rua, recolher lista de presença, entre outras tarefas.
O acampamento “Che Guevara”, com pouco mais de um mês, ainda não está funcionando a todo vapor, com atividades que envolvam os moradores todo o tempo. Agora eles estão ocupados em construir seus barracos nos lotes que conseguiram. O fato é que, com as chuvas incessantes, logo que ocuparam, muitas pessoas não se somaram à luta. Passado algum tempo, sem chuva e tendo a ocupação se consolidado, muitas famílias chegaram em busca de moradia. A partir daí, o movimento dividiu o terreno em lotes de 10m X 5m cada, totalizando 675 lotes. Hoje, cerca de 400 famílias já foram sorteadas e estão morando no acampamento. Existe uma grande lista de espera ainda de famílias que aguardam a sua vez; o que dependerá da participação delas no movimento ou da desistência de outras.
Evidentemente, não há espaço pra todo mundo. “O problema da habitação é muito grande, uma só ocupação não resolve todo o problema, por isso nossa luta por moradia digna não pára”, comenta um dos coordenadores. Quem está na lista de espera é chamado a vir todo dia participar das assembléias, que acontecem sempre às 19h, e assinar uma lista. Quem já garantiu seu lote, através do sorteio, também é convocado a participar dos encontros e principalmente das lutas encampadas pelo movimento, como atos, outras ocupações, acorrentamentos, etc. O informe que Guilherme passa na assembléia deixa clara a necessidade de todos estarem sempre preparados e atentos aos próximos passos, “não é porque conseguiu seu lote que a luta acabou, a luta nossa é todo dia”.
Ao que tudo indica, entretanto, a batalha diária dos moradores do acampamento “Che Guevara”, em Taboão da Serra, tende a ficar ainda mais tensa de agora em diante. É que na semana passada a estabilidade da ocupação foi ameaçada, pois o proprietário do terreno acabou entrando novamente com o pedido de reintegração de posse, o que vai exigir uma maior solidariedade por parte de todos os apoiadores desta luta. Passa Palavra
Fonte: PassaPalavra
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