Os mercados financeiros destroem a si mesmos e ao futuro do continente, enquanto a União Europeia submete-se e seus povos se enfurecem.
A montanha pariu um rato, de novo. No domingo 2, após angustiantes negociações, os países da Zona do Euro e o Fundo Monetário Internacional prometeram socorrer a Grécia com 110 bilhões de euros e seu governo aceitou o pacote de austeridade exigido em contrapartida.
Mais que o dobro dos 45 bilhões propostos três semanas antes, com um discurso de unidade mais convincente, sem os tantos “mas” e “ses” que alimentavam dúvidas sobre a real disposição dos europeus, principalmente da Alemanha, de concretizar a ajuda prometida.
A União Europeia, teoricamente a maior potência econômica mundial, aguardou tímida e ansiosamente a reação dos “mercados” – ou seja, essencialmente os mesmos bancos que há um ano seus governos tiveram de socorrer de seus próprios erros. Foi de completa indiferença: o euro continuou a cair, assim como as ações das empresas europeias e os títulos de dívida da Grécia e de outros países europeus: não só Portugal e Espanha, que tiveram suas classificações recentemente rebaixadas pela Standard & Poor’s, mas também a Itália, maior emissor de dívida da Europa (42% dela em mãos de estrangeiros, ante 45% da Espanha, 77% da Grécia e 80% de Portugal).
No papel, o déficit cairá de 13,6% do PIB em 2009 (8% déficit primário, o resto pagamento da dívida) para 8,1% em 2010, 7,6% em 2011 e 2,6% em 2014. O PIB, que caiu 2% em 2009, cairá 4% em 2010 e 2,6% em 2011, antes de crescer 1,1% em 2012. Mesmo assim, a dívida pública, hoje em 113% do PIB, chegaria a 149% em 2013, para não falar da dívida privada externa da Grécia (78% do PIB em 2009), que uma recessão também tornaria mais difícil de pagar. É quase certo que a retração da economia será bem maior, resultando em menor arrecadação e em déficit e dívidas maiores. Poucos ainda acreditam que a Grécia conseguirá evitar a moratória, a saída do euro ou ambas as coisas e cada vez menos investidores acreditam que o problema se limitará a esse país. Ainda em 15 de março, o luxemburguês Jean-Claude Juncker, presidente do eurogrupo, tranquilizava os integrantes dizendo que a ajuda não seria realmente necessária, bastariam os fios dos bigodes europeus para acalmar os mercados e permitir à Grécia rolar normalmente sua dívida. Não foi assim, é claro. O custo de rolagem da dívida grega continuou proibitivo, mais de 7% ao ano. No dia 23, a Grécia solicitou oficialmente a ativação da ajuda e então verificou-se que não bastava.
A Standard & Poor’s rebaixou a “lixo” sua dívida, que em janeiro de 2009 ainda punha na mesma classe A+ da Itália ou Chile hoje e advertiu os credores de que podem perder 50% a 70% em caso de moratória. O risco-país disparou e os acontecimentos se precipitaram.
Os gregos também reagiram mal. Em pesquisas de opinião, 70% se disseram contra o acordo com o FMI, 68% repudiaram os sacrifícios propostos pelo governo para pagar a dívida e 50% se disseram dispostos a sair às ruas para protestar. Uma ameaça que não deve ser desprezada.
No sábado 1º de maio, estudantes saíram às ruas, invadiram lojas, vandalizaram bancos e enfrentaram policiais com pedras e garrafas. Foi só o começo: na segunda-feira, professores invadiram a tevê estatal para ler um manifesto contra o FMI e o congelamento de contratações.
Terça iniciou-se uma paralisação geral de 48 horas e no dia seguinte, dezenas de milhares de pessoas (25 mil para a polícia, 100 mil para os sindicatos) assediaram o Parlamento em Atenas, enquanto a greve paralisava 80% dos postos de trabalho, incluindo transportes, escolas e hospitais. Três pessoas morreram no incêndio de uma agência bancária atacada com coquetéis molotov. Em Salônica, segunda cidade da Grécia, 30 mil participaram do protesto.
Ira compreensível: os gregos, já sufocados por um desemprego de 10,3% (25,3% entre jovens de até 25 anos) arcarão com aumento de 21% para 23% no imposto sobre valor agregado (19% até março) e de mais 10% em cigarros, álcool e combustíveis, adiamento das aposentadorias em pelo menos três anos e corte drástico em seu valor (que passará a ser baseado no salário médio durante a carreira e não no final), tudo isso combinado com a “liberalização” dos mercados de energia e transportes e das profissões regulamentadas, o que trará tarifas mais altas e salários mais baixos.
Os funcionários públicos, além disso, terão congelamento dos salários até 2014, restrição ou eliminação do 13º e 14º salários (abolidos para salários a partir de 3 mil euros, limitados a mil euros para salários menores – em março, já haviam sido cortados em 30%) e corte de mais 8% nas licenças (já reduzidas em 12% desde março).
A revolta é tanto maior quanto grande parte do problema se deve à sonegação de impostos por gregos ricos, estimada em 23 bilhões de euros anuais – quase 10% do PIB. Pessoas que declaram ganhar apenas 12 mil euros por ano e são isentas de imposto de renda possuem casa própria, casa de campo, iate e dois carros. Nas declarações ao Fisco, apenas 324 moradores dos subúrbios de Atenas admitiram ter piscina: o Google Earth mostra 16.974. Quando isso veio a público, os fabricantes foram inundados de telefonemas de clientes ansiosos perguntando – talvez tarde demais – sobre como camuflá-las. Mais difícil é entender a reação de grande parte dos especialistas, jornalistas e opinião pública dos países europeus mais ricos, frontalmente opostos a qualquer ajuda à Grécia. São os que mais têm a perder com um colapso grego. Três quartos da dívida grega, pública e privada, estão nas mãos de bancos, seguradoras e fundos europeus, principalmente da França (67 bilhões de dólares), da Alemanha (36 bilhões), da Itália (26 bilhões) e do Benelux (59 bilhões).
Das importações gregas (93,9 bilhões de dólares em 2008, 61,5 bilhões em 2009), 62% vêm da Europa: 12% da Alemanha, 12% da Itália, 5% da França, 5% da Holanda. É uma amostra do que virá se outros países forem contaminados. A dívida pública e privada dos PIIGS para com outros europeus é de 1,54 trilhão, incluindo 784 bilhões com instituições francesas e 522 bilhões com alemães. Se um país como a Espanha tiver dificuldades semelhantes, pode ser o fim do euro, como advertiu o economista Joseph Stiglitz.
Há contradições ainda maiores. O mercado financeiro encorajou o endividamento da Grécia e de outros países e ajudou-os a maquiar suas contas públicas (Goldman Sachs e JP Morgan). Não advertiu sobre riscos de suas dívidas (Standard & Poor’s e outras agências) ou do mercado imobiliário (93% dos títulos subprime de 2006 com classificação AAA – a mais alta possível – tiveram de ser rebaixados a “lixo” até o início de 2010) e pôs à venda títulos que sabiam destinados a virar pó (Goldman Sachs, UBS, Citi, Bank of America, Deutsche Bank). Foram levados pelas próprias negociatas à beira da falência, arrastando toda a economia consigo, e precisaram ser socorridos com empréstimos e capitalizações no valor total de 12,8 trilhões de dólares nos EUA e 5,3 trilhões na União Europeia.
Para socorrê-los, esses países tiveram de aumentar pesadamente suas dívidas públicas. Agora, os mesmos bancos, enquanto pagam bilhões em bônus aos mesmos executivos que criaram o caos, criticam governos por terem-se endividado, recusam rolar sua dívida ou assumir sua parte do risco e especulam sobre sua falência, enquanto fazem campanha contra taxas e regulamentações financeiras nacionais ou internacionais.
E a maior parte dos partidos e governos dobra-se aos medos e apetites do “mercado” – criatura muito pior e mais estúpida que o Leviatã de Thomas Hobbes. O Estado absolutista ao menos tinha uma cabeça, o soberano, enquanto essa entidade descerebrada, toda garras e estômago, é incapaz até de perceber quando está comendo o próprio rabo. Levar a Grécia à falência, além de condenar milhões de pessoas a anos de retrocesso e desespero, é jogar chaves inglesas nas engrenagens das maiores máquinas de gerar e acumular lucros já construídas pelo capitalismo: o euro e a União Europeia, cujo colapso criaria uma crise mundial muito mais grave que a de 2008.
Há uma solução simples e que sequer chega a ser radical: regulamentar os fluxos internacionais de capitais e os mercados financeiros e colocá-los sob rédeas semelhantes às dos anos áureos de Bretton Woods, para seu próprio bem e o das economias nacionais. Outra – ainda melhor se combinada com a primeira – é dar à União Europeia uma real unidade política e fiscal, com recursos e poder de decisão para mobilizar trilhões de euros e promover os ajustes necessários, não só dos devedores, como dos credores. Na atual situação política, ambas as soluções parecem improváveis. A Grécia será empurrada para a deflação competitiva, com efeitos como os vistos na Letônia, que sofreu queda do PIB de 25% de 2008 a 2010, tem desemprego de 22,8% (fim de 2009), mas é “história de sucesso” para The Economist porque não desvalorizou a moeda, não deixou de pagar os credores e seu restaurante de maior luxo está cheio. Pode roer a corda, como a Argentina: declarar moratória, reestruturar a dívida e, se preciso, abandonar o euro. Mas será apenas o começo: outros países a seguirão, enquanto o mercado se devora.
Por Antonio Luiz M. C. Costa
Fonte: Carta Capital
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