Mesa do Fórum Social Mundial discutiu a necessidade e os riscos de se garantir o acesso gratuito dos cidadãos a determinados bens públicos
27/01/2010
Igor Ojeda
de Porto Alegre (RS)
A gratuidade dos bens públicos é fundamental para se chegar a um mundo mais justo. Mas os desafios que isso traz também devem ser cuidadosamente pensados. Essa foi a tônica principal da mesa “Economia e Gratuidade”, debate integrante do seminário “FSM dez anos depois: desafios e propostas para um outro mundo possível”, que está sendo realizado entre 25 e 29 de janeiro em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.
O primeiro a falar foi o economista Ladislaw Dowbor, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), que fez uma introdução didática sobre o tema. Ele iniciou sua exposição usando como exemplo as ruas das cidades de todo o mundo. Segundo Dowbor, andando pelas vias urbanas, ninguém imagina que, na verdade, elas não são gratuitas: estas geram custos necessários, como o de manutenção. Assim, os cidadãos pagam para caminhar nas ruas de suas cidades na medida que pagam impostos. “Em termos econômicos, a rua é um bem produzido, é um bem de consumo coletivo”, disse.
De acordo com ele, de forma geral, os trabalhadores do mundo capitalista têm uma parte de sua capacidade de consumo garantida pelo salário que recebem. Já o desfrute dos bens coletivos é proporcionado pelo pagamento de impostos. Portanto, o desafio, segundo Dowbor, é “pensar como financiar esses bens, porque o custo existe”.
O professor da PUC-SP alertou também para a ilusão que há na sociedade brasileira de que as campanhas eleitorais não são realizadas com financiamento público, ou seja, de que quem arca com tais despesas são os próprios candidatos ou partidos. De acordo com ele, na realidade, as empresas que financiam as candidaturas incluem tais gastos nos custos de produção, que são repassados aos produtos consumidos pela população. “Além disso, em vez de termos nos cargos eletivos políticos que representam os cidadãos, temos bancadas de empreiteiras, bancadas de empresários do agronegócio, bancadas da mídia etc.”.
Para Dowbor, um campo através do qual se pode discutir a questão da gratuidade é a internet, cujo acesso, para ele, deveria ser por meio de preços muito mais baixos do que são hoje. Um dos usos que se poderia fazer desse instrumento é a transmissão de conhecimento nas escolas.
Riscos
O filósofo Patrick Viveret, do Centro Internacional Pierre Mendes, iniciou sua exposição com a crítica da monetarização das análises econômicas e sociológicas (como por exemplo, indicadores como o PIB, que não levam em conta as riquezas não monetárias) e até da moeda que, para ele, é um bem público a serviço da troca, mas cuja apropriação pelo capital a tornou um fim em si mesmo, ou seja, motor de uma economia especulativa.
Ainda segundo Viveret, no período em que vivemos uma crise econômica mundial de grandes proporções, a economia da gratuidade se torna essencial como estratégia de transformação. No entanto, ela traz “custos ocultos”, que podem resultar em graves problemas. Citando Marcel Mauss, ele explica que a gratuidade e a doação podem trazer embutidas relações de dependência e dominação, pois, se a pessoa que recebeu uma doação não quer ser dominado, deve doar algo equivalente: “é a lógica da doação/contra-doação”. Nesse sentido, ele critica os ex-estados socialistas como a URSS que, para ele, se chocaram com dificuldades antropológicas. “O ser humano precisa de espaço de afirmação. Se negamos isso, fabrica-se a dependência”.
De acordo com o filósofo francês, to que está por trás do fracasso tanto do modelo capitalista como do socialista real é a desmedida do “produtivismo” adotados por ambos, que estaria no centro da atual crise ambiental. Para ele, deve-se fazer uma ligação direta entre tal desmedida e o que ele chama de “mal viver”. Portanto, deve-se ligar também a necessidade da existência de bens comuns com a necessidade do bem-estar, “para que as lógicas de posse possam ser ultrapassadas”.
Saúde como negócio
Já a boliviana Nila Heredia, presidente da Alames (Associação Latino-America de Medicina Social) fez uma análise sobre o tema da mesa a partir de uma perspectiva sobre a saúde. Segundo ela, estabeleceu-se um senso comum na civilização ocidental segundo o qual, se uma pessoa adoece, isso é um problema privado. “Isso nos leva a supor que as pessoas têm culpa, por não terem se cuidado”.
Portanto, para ela, ao limitar a questão da saúde às doenças, o sistema capitalista gerou tanto um sentimento de culpa nas pessoas como a idéia de que a saúde pessoal depende de cada um, e não do Estado. “Para nós, a saúde tem como objetivo fazer com que as pessoas não adoeçam, o que contraria as lógicas econômicas interessadas que existam doentes, pois
isso é negócio”, disse.
Como exemplo de tal lógica econômica, ela cita o surto de gripe suína. “A OMS fez uma declaração apressada de que o surto era uma pandemia. Por quê? Para que as empresas pudessem desestocar suas vacinas e remédios que sobraram da gripe aviária e que iriam expirar em breve”, criticou.
Na sua fala, Lilian Celiberti, da Articulación de Organizaciones Feministas MARCOSUR, explicou a existência de uma divisão sexual do trabalho, na qual a contraposição público x privado se reflete na contraposição homem x mulher. “Está estabelecido que, enquanto a mulher se ocupa do âmbito privado, ou seja, o cuidado com a casa, os filhos etc, o homem se ocupa do âmbito público”, disse.
Segundo ela, como está naturalizado que é a mulher que deve assumir as tarefas de cuidado, os homens perderam a capacidade de desenvolver uma ética do cuidado.“O caminho para outro mundo supõe modificar essa divisão sexual do trabalho. Não apenas porque o trabalho gratuito realizado pelas mulheres é invisível, mas também porque temos que mudar a visão de que o indivíduo é auto-suficiente, quando na verdade precisamos do outro”, afirmou.
Banco comunitário
Finalizando o debate, João Joaquim de Melo Neto Segundo, fundador do Banco comunitário Palmas, na periferia de Fortaleza, apresentou a experiência ao público presente. Ele contou que diversas comunidades tradicionais e consideradas pobres de todo o Brasil estão excluídas do sistema bancário e financeiro por não oferecem boas expectativas de lucro. Daí a necessidade de se criar bancos comunitários sob princípios distintos. “Entendemos que economia e solidariedade têm tudo a ver”, disse.
De acordo com ele, no Conjunto Palmeira, comunidade da periferia de Fortaleza onde vive, já funciona um sistema financeiro paralelo (inclusive com moeda própria) baseado na solidariedade. “Banco comunitário é um serviço financeiro, solidário, em rede, de natureza associativa e comunitária, voltado para a reorganização das economias locais na perspectiva da geração de trabalho e renda”, resumiu. Nesse sentido, o objetivo é equilibrar a produção em um determinado território sem estimular a concorrência.
Fonte: www.brasildefato.com.br
A economia da gratuidade como alternativa.
In democracia, In economia, In politicasábado, 30 de janeiro de 2010
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