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De poucos para poucos

quinta-feira, 17 de junho de 2010

A sociedade brasileira é uma das mais injustas e desiguais do planeta. Em termos estatísticos perdemos para poucos. Somos um povo trabalhador. Produzimos muitas riquezas. No período de 1930-1980, fomos a economia que mais cresceu, em média. Vivemos num território que, provavelmente, seja o mais pródigo em riquezas naturais do mundo. Temos todos os climas e biomas. Estamos construindo uma civilização caracterizada pela mescla de culturas e povos originários da Ásia, Europa e África, com os nativos deste território. Não há sociedade similar que tenha se constituído com tamanha diversidade.

Como diz a piada sobre a criação do universo, até os anjos reclamaram dos privilégios que teríamos recebido. Aos quais, Deus teria justificado que, em troca teríamos os piores governos do planeta... E parece que os desígnios divinos se realizaram, porque nesses 500 anos de Brasil foram raros os períodos de democracia e de governos comprometidos com os interesses da população.
E com tantas riquezas naturais e um povo tão batalhador nossa sociedade ainda sofre muitas mazelas inaceitáveis.

Nada justifica a elevada concentração da riqueza, da propriedade dos bens e da renda, que beneficiam apenas os 10% mais ricos. E essa concentração de renda e riqueza continua crescendo, como parte da lógica perversa do sistema econômico. O governo Lula contribuiu para distribuir melhor a renda entre os que vivem do trabalho. Mas, na distribuição da riqueza total produzida na sociedade, o capital aumenta a cada dia sua parcela em detrimento dos rendimentos do trabalho, que nunca estiveram tão baixos, como agora. Melhoramos muito as oportunidades de emprego, em relação ao período neoliberal, mas ainda apenas 50% dos trabalhadores têm carteira assinada e seus direitos sociais e previdenciários garantidos.

Nossa economia é cada vez mais dependente do exterior e do capital financeiro. O Estado brasileiro transformou-se no acumulador da poupança nacional e repassa todos os anos mais de 250 bilhões de reais (25% de toda a receita) na forma de juros ao sistema financeiro, com as inaceitáveis teses de superávit primário, que nenhum país desenvolvido pratica. O povão compra tudo a prestação, iludindo-se com um poder de compra sem renda suficiente e paga duas vezes. Uma para a loja e outra para o sistema financeiro, com as maiores taxas de juro do mundo, que em media chegam a 48% ao ano. O capital estrangeiro vem aqui nos explorar e reenvia seus lucros livremente.

Temos uma dependência tecnológica. Investimos uma ninharia em pesquisa e tecnologia. O capital internacional controla nossas riquezas naturais: minérios (basta saber que 52% dos acionistas da poderosa Vale, agora moram no exterior), água, hidrelétricas, petróleo (ao redor de 30% dos acionistas da Petrobras são estrangeiros) e ultimamente até o setor sucroalcooleiro se desnacionalizou, em 33%, em apenas três anos.

É mais importante, até por administrar maior volume de recursos, hoje, ser presidente da espanhola Telefónica do que ser prefeito da cidade de São Paulo. Nossa burguesia, como advertira o saudoso Florestan Fernandes, abandonou há tempos a proposta de um projeto de desenvolvimento nacional, mesmo capitalista. É uma lúmpen-burguesia, que se contenta em superexplorar seu povo para repartir as taxas do lucro com o capital internacional. Agora cada vez mais controlado pelo capital financeiro e pelas grandes corporações globalizadas.

Os índices de concentração da propriedade da terra, um bem da natureza que deveria estar a serviço de todos, nunca estiveram tão concentrados. O último Censo Agropecuário do IBGE revelou que a concentração fundiária em 2006 é maior do que em 1920, quando havíamos recém-saído da escravidão e que se praticava quase um monopólio da propriedade da terra. A produção agrícola está cada vez mais baseada na monocultura, no uso intensivo de venenos e na expulsão da mão de obra do campo. Nos transformamos no maior consumidor mundial de venenos agrícolas, que destroem a natureza, desequilibram o meio ambiente e contaminam os alimentos que todos comemos.

As grandes cidades se transformaram em conglomerados humanos, onde os problemas só aumentam em termos de transporte público, habitação e meio ambiente. Temos um déficit de mais de 10 milhões de moradias. Ou seja, temos 10 milhões de famílias (!!!) que vivem em condições subumanas, insalubres, ainda penduradas em morros e mangues, como denunciava nosso querido Lupicinio Rodrigues. Por causa disso, somos, talvez, um dos poucos países onde se morre “de chuva!” E não é por falta de cimento, areia, tijolo ou pedreiros. O programa Minha Casa Minha Vida, que previa a construção de 1 milhão de moradias, esgotou as inscrições em apenas uma semana.

O transporte público é uma vergonha. E a imprensa, porta-voz dos interesses das empresas automobilísticas, orgulha-se dos recordes de vendas. A média de tempo perdido para ir ao trabalho aumenta a cada dia, em condições cada vez piores. Com um custo social impressionante. O transporte individual e poluente como temos só beneficia meia dúzia de empresas transnacionais, não o povo!

Na educação, vivemos uma tragédia. Aumentamos as vagas para o ensino fundamental e secundário, alcançando quase a universalização. Mas a qualidade desse ensino é vergonhosa. Que o digam os analistas das provas de vestibulares, sobre o nível de conhecimento dos que querem entrar na universidade. E aí, apesar dos esforços inéditos do governo Lula, que quase duplicou as vagas, apenas 10% de nossa juventude pode ingressar no ensino superior.

Não há nenhuma razão para isso. Sociedades com economias mais pobres, como a Coreia do Sul, colocam 97% de sua juventude na universidade e formam mais de 200 mil engenheiros por ano. A Bolívia, economia mais pobre do continente, garante 65% de seus jovens na universidade. E nós? Quantos engenheiros e médicos formamos? Temos mais de 500 municípios sem médicos, até na Grande São Paulo. Há mais jovens negros brasileiros estudando Medicina em Cuba, pela generosidade daquele povo, do que em todas as faculdades do Brasil. Temos também uma dívida com a população mais pobre. Cerca de 16 milhões de trabalhadores adultos não sabem ler e escrever. E ninguém faz nada para ajudá-los. Precisamos urgente de uma campanha nacional, como sonhara Paulo Freire, uma verdadeira guerra cívica de ajuda aos nossos irmãos cegos das letras. Os programas atuais são ridículos.

Padecemos de outro mal, sempre escondido da opinião pública. A concentração da propriedade dos meios de comunicação. Meia dúzia de grupos econômicos controlam toda informação que circula nas televisões, revistas semanais e jornalões. Paulo Henrique Amorim, com toda a sua experiência, adverte que com três telefonemas se decide qual será a principal informação que todos os brasileiros terão de ler ou de ser “manipulados” na semana. Isto é uma vergonha! (que nunca foi denunciada nem pelo jornalista que tem raiva de garis...). A informação deixou de ser um direito público, como determina a Constituição, e passou a ter uma dupla face. De um lado, é fonte de lucro e enriquecimento abastecido por polpudas verbas do dinheiro público. E, de outro, a mídia transformou-se no grande partido de reprodução da ideologia da classe dominante insensível aos problemas do povo.

Sabe-se que as raízes de todos esses problemas são estruturais e do modelo econômico adotado. Primeiro, foi o modelo agroexportador no período colonial. Depois, ao longo do século XX, implantamos uma industrialização dependente do capital estrangeiro. E agora somos reféns do capital financeiro internacional.
Segundo, tivemos quase sempre governos servis, subalternos aos interesses econômicos estrangeiros. Mesmo o governo Lula conseguiu apenas em parte frear as políticas neoliberais e ajudou a distribuir o bolo entre os mais pobres. Mas, por sua composição de classe e partidos, não teve força suficiente para enfrentar os problemas estruturais da sociedade brasileira.

Esses problemas são graves e tendem a se agravar mais ainda. Nos movimentos sociais, acreditamos que eles serão resolvidos somente quando tivermos em nosso país uma conjugação de forças populares, que se mobilizem em aliança com um governo popular. E assim se façam as mudanças legislativas no poder público e, sobretudo, a mudança do modelo econômico, para construir de fato um projeto popular, ou seja, a serviço do povo no Brasil. Como sonhara Paulo Freire.

E, apesar da apatia e pasmaceira social nesse período de nossa história, não se iludam, o povo voltará a se mobilizar e a se organizar por mudanças estruturais.


Por João Pedro Stedile, ao Carta Capital




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