“Boa Noite a Todos, caro senhor Herivelto Quaresma lhe pergunto e lhe proponho um tema. Qual o interesse americano na paz mundial se o seu orçamento militar é maior que o PIB da maioria dos países do mundo e o fim desses gastos significariam um transtorno gigantesco às regiões onde se encontram as fábricas de armas americanas e um grande número de demissões.”
“Nunca se escreveu sobre os interesses dos fabricantes de armas na manutenção dos gastos e o que realmente representa esse ramo de atividade para a economia americana e para os estados americanos que sediam estas fábricas. Se o Brasil gastasse centenas de bilhões de dólares com armas o mínimo indício de busca da paz seria o suficiente para que os governadores e prefeitos corressem para lembrar o presidente sobre o problema do desemprego e da recessão. Acho que a paz levaria os EUA à recessão.”
Tema urgente e necessário, é pouco comentado – de fato – na imprensa como um todo, porém comum nos debates mais vinculados à área da economia e mesmo em questões relacionadas aos direitos humanos. O próprio cineasta norte-americano Michael Moore filmou o caso de uma cidade – me foge se canadense ou estadunidense – em que praticamente toda a economia local girava em torno de uma única empresa da indústria bélica.
Neste caso, a primeira questão já está colocada: acabar com tal arranjo produtivo – um exemplo: aumento vertiginoso dos impostos, tal como costumam fazer com os bingos ou o cigarro – seria trágico, a curto e médio prazo, para dezenas ou até mesmo centenas de famílias.
A segunda questão, a mais complexa, é justamente a forma como essa mudança gradual da economia poderia ser efetivada. Aqui cabe uma pequena síntese, talvez insuficiente porém necessária, do que estamos a falar: a economia.
Relembrando uma teoria básica
Em todo arranjo produtivo – e, neste caso específico, um arranjo produtivo local –, não podemos deixar de lado a velha questão da mais-valia. Citando:
“Quando o capitalista considera a mercadoria fabricada, não pode aí reconhecer a diferença entre o capital constante (meios de produção) e o capital variável (salários). Sem dúvida, ele sabe que sobre seus gastos (o preço de custo da mercadoria) uma parte é despendida em meios de produção e outra parte em salários, e que será preciso, para a produção contínua, repartir o mesmo dinheiro proveniente da venda da mercadoria, para comprar, por um lado, meios de produção e, por outro, força de trabalho.”
“Mas sobre a produção do valor e da mais-valia, isto não lhe diz nada. O que ele vê é unicamente que, no preço de custo da mercadoria, retorna exatamente o valor da mercadoria, tal como ele já existia antes do início da produção, e que o próprio salário retorna tal como ele existia antes do início da produção. A diferença característica entre o capital constante e o capital variável está, pois, encoberta pelas aparências, e a mais-valia obtida no fim da produção parece provir uniformemente de todas as partes do capital”. (Karl Marx. O Capital. RJ: Zahar Editores, 1982, edição de Julian Borchardt).
O que Marx argumentará com extrema precisão é que, ao contrário, a diferença entre o capital fixo (prédio, máquinas etc.) e o capital circulante (matérias-primas, matérias auxiliares e os salários) salta aos olhos. Para mais detalhes, vide o capítulo 6 da referida obra.
Bom, este foi apenas um parêntesis para lembrarmos o seguinte tópico.
É verdade que uma determinada economia poderá estar histórica e dramaticamente vinculada a um setorindesejável – supondo que poderiam existir governantes que supostamente desejem diminuir o orçamento militar de seus países. No entanto, a experiência de mudança do arranjo produtivo citado não poderia ter um lugar melhor para acontecer.
O Estado forte é uma realidade
Os Estados Unidos tem uma das economias mais fortes do planeta e, portanto, como sabem os economistas desenvolvimentistas e tentam esconder os neoliberais, um Estado muito forte. Ele é capaz, inclusive, de ajudar financeiramente, de forma espantosa, os gigantes bancos deste país – a autoproclamada “iniciativa privada”.
Este Estado, forte e robusto, tem duas ações fundamentais que poderiam minar o problema do desemprego, neste rearranjo:
1. Utilizar a mais-valia, sua espantosa arrecadação anual que forma a mais rica economia do mundo, para investir em outros setores e fazer, portanto, a substituição gradual da produção.
2. Reformar as agências, de modo que passem a ampliar as “áreas estratégicas” de investimento e incluir, por exemplo, a produção em energia limpa ou as tecnologias limpas de produção de alimentos em áreas rurais.
Estas são observações pontuais, limitadas. No entanto, permitam-me argumentar que são centrais para o direcionamento do tema que o Sr. Toshiuki nos traz.
Dois são os principais obstáculos frequentemente observados:
1. No meio disso tudo, conforme frequentemente esquecem os próprios economistas neoliberais, estão as pessoas. Centenas de milhares de pessoas passaram décadas de suas vidas se dedicando a um determinado ramo da economia, com grande afinco por vezes, e é nele que estão inseridos. Isso traz uma dificuldade muito grande, pois uma mudança econômica estrutural demandaria também uma força social suficientemente grande para criar a própria demanda pelo rearranjo produtivo. É o caso da indústria do tabaco, dos anos 90 para cá.
2. The political will, como dizem por lá, ou seja, a vontade política. As nossas frágeis nações conseguem, por meio de processos ditos “democráticos”, aprovar medidas que passam longe das aspirações da opinião pública – que, como vimos na guerra do Iraque, também poderá ser manipulada para um determinado desejo. Os governos podem tudo, principalmente os mais consolidados.
O que é, afinal, uma verdadeira reivindicação?
Eu tenho um emprego X, com uma remuneração Y e direitos observados na lei trabalhista. Uma vez negligenciados, o trabalhador irá imediatamente reivindicar a reparação, seja ela financeira ou moral. A sociedade capitalista criou, mal ou bem – e principalmente nos países mais consolidados – diversos mecanismos para tratar desta questão. O Judiciário, a Imprensa e os Sindicatos são apenas três exemplos.
Mas quanto às questões mais amplas? Uma empresa norte-americana de petróleo já provocou, desde o dia 20 de abril, o vazamento de cerca de 71,9 milhões de litros de óleo no Golfo do México, ameaçando o ecossistema local, regional e até global, a longo prazo. Sem querer parecer simplista, permitam-me pensar de modo mais amplo. O sistema judiciário estadunidense, se for extremamente eficiente, conseguirá retirar milhões e milhões de dólares da British Petroleum, numa tentativa de “reparar” os danos ao meio ambiente e às pessoas que vivem na região. Nem sequer é o que está acontecendo, mas vamos pensar nisso como uma hipótese.
Nenhum “juiz”, no entanto, tem a prerrogativa de determinar o fracasso do sistema energético baseado em matérias-primas danosas ao meio ambiente. E as nossas “democracias” tão pouco dão voz aos “radicais” que buscam, a partir desta perspectiva mais visionária, eliminar de uma vez por todas as práticas genocidas, em termos ambientais, de geração de energia. É esta energia que mantem um país se “desenvolvendo” e “crescendo” de modo “sustentável” (ou seja, sustentando o crescimento).
Precisamos identificar frequentemente as falhas estruturais de um sistema que pensa a vida em termos financeiros para sermos, como argumentou Gandhi, a mudança que desejamos ver no mundo.
Podemos pegar um caso exemplar, para não soar “utópico”, como é comum ouvir nos corredores diplomáticos. O Movimento Libertem Gaza, responsável pela frota de pequenas embarcações que rumavam a Gaza para levar ajuda humanitária, é um grupo modesto, porém decidido a fazer valer a vontade da verdadeira “comunidade internacional”.
Israel vê crescer o ódio ao país por um motivo muito simples: a “democracia” que lá se encontra resultou na manutenção, há décadas e até hoje, de líderes de extrema-direita, que efetivamente acreditam que o povo palestino é um povo menor, que não foi “escolhido” e que, por isso, não merece a “Terra Santa”. Evidentemente que o mundo em coro, em pleno século XXI, repudia tal assertiva, que é confirmada não por palavras, mas pelas ações contínuas de terrorismo promovidas pelo Estado sionista.
No entanto, o “mundo” possui representantes que, na hora H, entram para a turma do “Deixa disso”, como se diz na linguagem popular. Contra nações mais frágeis, sanções econômicas variadas e até mesmo guerras. Para as nações mais potentes, o “bom senso” da diplomacia, o “diálogo”. Um peso, duas medidas.
Este Movimento fez, portanto, o que ninguém ousou fazer (apesar de pedirem, “diplomaticamente”): mesmo pequenos, desarmados e agindo sem o aparato naval adequado, romperam o bloqueio imposto por Israel – lembrando que esta não é a primeira vez que eles conseguem furar os bloqueios. Desta vez, foram nove mortos ou mais. A embarcação chegou e a ajuda humanitária foi entregue.
Aqui, portanto, nada de novo. Se existem pessoas que verdadeiramente enfrentam o sistema estabelecido por governantes insensíveis aos apelos populares, devem saber também que poderão ter problemas graves. Em todo o mundo, centenas de milhares de pessoas lutam para que esta situação específica – se você luta por justiça social, poderá pagar com a própria vida – mude. Mas o risco é real.
Por que fazê-lo, então? Esta é uma grande questão humana.
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(*) Herivelto Quaresma é jornalista e blogueiro carioca. Conheça seu blog clicando aqui ou o acompanhe pelotwitter.com/heri_quaresma
fonte: Fazendo Media
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