“Essa é sua vida, e está terminando a cada minuto”, você acorda no carro, preso no trânsito, exposto ao calor intenso do litoral, esperando pacientemente pela troca de cores do semáforo. Olha pra esquerda e vê um garoto, de aproximados 10 anos de idade, sem camiseta, sem chinelos, apenas uma bermuda cobrindo seu corpo magro e moreno. Seu rosto não expressa nada, não transmite nada, apenas te olha, fixamente e vai a sua direção.
Com seus pequenos pés descalços ele anda até a frente do carro, suas mãos seguram malabares, com os quais ele tentará ali, naqueles poucos segundos ganhar uma moeda, uma nota, mas, provavelmente ganhará um “não tenho nada, meu filho”. Num gesto quase que mecânico, automático, de quem não faz aquilo por diversão, mas sim pela ânsia de sobreviver ele inicia os movimentos, uma peça de cada vez, até tê-las todas no ar, girando, equilibrando por um curto espaço de tempo, torcendo para que o motorista se impressione com sua habilidade, ou, o mais provável, dê-lhe dinheiro para que ele saia de lá logo.
Ele termina seu trabalho, se aproxima do carro, de vidros fechados que resguarda um refrescante ar condicionado, luxo para poucos, no meio daquele calor úmido e desgastante. Pelo vidro é possível ver seus olhos verdes, contrastantes com sua pele morena e seu cabelo enrolado, marcas profundas da miscigenação brasileira, a qual aquela criança foi exposta, fruto não só de heranças físicas, mas também herdeiro da pobreza e da desigualdade.
O vidro se abre, o motorista indaga o que o menino quer. Prontamente ele responde: “dinheiro!”. Ah, o dinheiro! A palavra mágica, a poderosa máquina de deturpar mentes, mover barreiras e gerar intrigas. Nada mais justo do que presentear o garoto com aquelas poucas moedas, troco de alguma compra que ficaram ali, no carro, exatamente para uma situação como essa. Num mundo onde tudo é lucro, tudo se compra, e nada é de graça, outra resposta vinda daquele menino seria no mínimo inusitada. As moedas passam da mão do motorista para aquela pequena mão, suja e áspera, marcada pelo trabalho, pela ausência de diversão.
De sua boca ressecada, ele pronuncia um agradecimento rápido e tímido, e eu, consigo olhar por uma última vez aqueles olhos marcantes, sinceros e tristes, antes que a pequena criança vire as costas e corra na direção de outros 5 jovens, trajados da mesma forma que ele, semelhantes fisicamente e também marcados como alvos da desigualdade.
É exatamente ai, nesse ponto, que me dou conta que somos todos malabaristas de farol, estamos todos seminus, expostos, vítimas do sistema que nos obriga a ser o que querem que sejamos. Nossos malabares são nossos amigos, nossos sonhos, nosso caráter, que estão em jogo, sendo apostados, podendo cair e se perder. Arriscamos pessoas que amamos, nossos objetivos pessoais, nossos sonhos de igualdade, nossa luta por justiça, nossa dignidade para ter dinheiro. Somos uma geração de caçadores de recompensa, sedentos por “ser alguém” dentro do mundo corporativo, por ser reconhecido profissionalmente num lixo de emprego que talvez nem gostemos, mas que provavelmente será necessário para nos adequar ao mundo capitalista e não nos tornar igual a aquele menino, e seu incerto trabalho nos semáforos das cidades. No final das contas, todos morreremos, e todas as nossas “realizações profissionais” serão apagadas da história, nem seu chefe, nem seu subordinado se lembrará de você, sua vida passageira termina e você se torna somente sombra e pó, nada mais.
Essa epifania serviu pra entender que somente realizações sociais, ativismo político, luta por mudanças fica marcado. As pessoas (as boas pessoas) se lembrarão de você por quem você foi e como agiu, e não pelo quanto de dinheiro tinha no bolso. A questão que fica é: Sendo malabaristas de farol, o que passa em nossas mentes, o que estamos dispostos a fazer se o motorista nos nega dinheiro? Até onde somos capazes de ir para ter o “precioso”.
“Você não é o seu trabalho. Você não é quanto dinheiro tem no banco. Você não é o carro que dirige. Você não é o conteúdo de sua carteira. Você não é nem o lixo das suas calças. Você é a merda ambulante do mundo”.
4 comentários:
Muito bom, parabéns
7 de fevereiro de 2011 às 19:37Infelizmente muitos ainda acreditam que conseguindo dinheiro e "sucesso" profissional, terão alcançado o ápice de felicidade de suas vidas, esquecendo-se dos que estão a sua volta. O texto está incrível, parabéns!
9 de fevereiro de 2011 às 18:36Sai daqui, vai escrever pro Brasil de Fato! Isso não é nível de Blog! Melhor texto das 564 postagens!
9 de fevereiro de 2011 às 20:46Filho, parabéns pelo texto, é realmente isso que acontece em nossas vidas, pois vivemos em um mundo totalmente capitalista onde somos os malabares e o governo é o malabarista que controla, manipula e direciona nossas vidas e destinos .
27 de fevereiro de 2011 às 19:07Postar um comentário