Publico artigo de Ivan Valente, deputado federal (PSOL-SP) e membro da Comissão de Relações Exteriores da Câmara. Socialista, defensor da política de integração da América do Sul, foi um dos parlamentares que lutaram para que o Parlamento brasileiro aprovasse a entrada da Venezuela no Mercosul, e um crítico do golpe de Estado em Honduras, defendido por tantos meios de comunicação no Brasil. Enfim, é uma voz indispensável no Congresso na defesa de uma política externa independente e avançada para o Brasil.
Vivemos uma situação curiosa. Há poucos meses enfrentamos manifestações claras da mais séria crise capitalista desde a Grande Depressão (1929-1939). Ela foi séria não apenas pelo montante de ativos e riquezas que evaporaram em um curto espaço de tempo, mas pelo fato de ter atingido em cheio o centro do sistema capitalista.
Diferentemente dos cataclismos dos anos 1990, que afetaram México, Tailândia, Rússia, Brasil e Argentina – a periferia – desta vez foi a economia dos Estados Unidos o epicentro das turbulências. A quebra de grandes bancos e empresas financeiras, no rastro da crise hipotecária mostrou os limites dó livre mercado como organizador social. Tudo aquilo que a pretensa boa ciência alardeava como virtudes incontestáveis da vida econômica, ruiu por terra.
Como todos sabem, a solução foi apelar para o socorro providencial do bom e velho Estado, através de estatizações, linhas de crédito, alterações legais e favorecimentos vários para salvar as empresas dos grandes capitalistas. Logo o Estado que, nas décadas anteriores, era tido como raiz de todos os males do mundo, matriz de ineficiência e de empreguismo. A AIG, sozinha, por exemplo, recebeu 160 bilhões de dólares do socorro dos governos. Aqui no Brasil, as montadoras ganharam 8 bilhões de Serra e Lula, e depois enviaram 12 bilhões para suas matrizes no exterior na forma de remessa de lucros.
Mas uma reflexão a mais deve ser feita nesses momentos em que a crise deu uma refluída: por que nós, da esquerda, não conseguimos produzir uma teoria alternativa ou mesmo um conjunto de reformas progressivas que não apenas minimizassem os estragos na área econômica mas também apontassem uma mudança de rumos na construção de uma sociedade diferente, de cunho socialista?
A lição das crises
Se olharmos rapidamente para a experiência de crises anteriores, vamos ver que elas serviram, do ponto de vista da esquerda, para basicamente duas coisas: 1. Para reabrir a disputa política na sociedade e 2. Para concretizar teorias alternativas.
A disputa foi reaberta. Não estamos mais nos tempos do obscurantismo neoliberal dos anos 1990, época em que toda opção era descartada em favor do chamado pensamento único – continua forte e agressivo, mas há reações. Eram os dias da cantilena do Estado mínimo, das privatizações e das desregulamentações.
A partir das mudanças ocorridas na América Latina – cujo marco inicial foi a eleição de Hugo Chávez, na Venezuela, em 1998 – novos tempos se abriram. Tivemos as batalhas de Seattle, em 1999, e os Fóruns Sociais Mundiais, a partir de 2001. E, acima de tudo, os enfrentamentos eleitorais em nosso continente se constituíram cada vez mais em palcos de disputas entre várias nuances da esquerda e da direita. Contribuições surgiram. Afinal, teorias revolucionárias não surgem apenas de ambientes acadêmicos, mas de ambientes onde há encarniçadas lutas sociais. Idéias desse tipo emergem oxigenadas pela força incontrolável das grandes mobilizações.
No entanto, se por um lado tivemos sucesso em reabrir os horizontes de luta, o mesmo não ocorreu quanto aos horizontes de longo prazo. Por razões complexas, conseguimos definir táticas imediatas mas não amadurecemos estratégias consistentes para o futuro, para a superação não apenas da crise, mas da etapa atual do capitalismo neoliberal.
Neste sentido, é da América Latina que se pode esperar as maiores chances de surgimento de estratégias para a construção de sociedades de cunho socialista. Nosso continente é o que mais longe tem levado o enfrentamento contra as forças de livre-mercado e contra a direita imperialista. Aqui estão povos que tem se levantado para discutir o seu futuro.
O que ocorre com nossos irmãos latino-americanos é a verdadeira aventura de reinventar a vida e lutar para conquistar a mudança social e a libertação dos nossos povos. A cara desse fenômeno é quéchua, aymara, guarani, a redescoberta indígena, negra, popular e feminista que vai beber na história de dominação indo-americana para retomar o exemplo de resistência e experiência revolucionária presentes nas nossas origens.
É daqui que uma nova teoria pode ser produzida a partir das lutas cotidianas pela terra, pelo emprego, pela saúde, pela moradia, pela educação, pelo meio ambiente. E seu papel deve ser claro: balizar a disputa de rumos para que o socialismo não seja apenas uma palavra de ordem em nossos discursos, mas um objetivo político palpável.
É isso que temos buscado defender nos debates travados na Câmara dos Deputados em torno da política externa brasileira, onde a oposição de direita manifesta cotidianamente saudades dos tempos em que os Estados Unidos ditavam todos os rumos do continente.
Baseados em princípios como a soberania nacional e a auto-determinação dos povos, combatemos a ALCA e a integração subordinada proposta pelo bushismo. Por duas vezes, estivemos na Venezuela como observador internacional, constatando a transparência das eleições de Chavez e a presença feroz da direita. Criticamos duramente o golpe em Honduras e estivemos em Tegucigalpa com o presidente Manuel Zelaya, manifestando a solidariedade do Parlamento brasileiro e defendendo a democracia na América Latina. Pautamos no Congresso o debate sobre a presença de bases militares norte-americanas na Colômbia. Defendemos a entrada da Venezuela no Mercosul.
Exemplo vivo
No aniversário dos 40 anos da morte de Ernesto Guevara, em La Higuera e Valle Grande, na Bolívia, reafirmamos os ideais de Che, que ainda hoje despertam o sonho e a rebeldia de milhares de jovens mundo afora. Che viveu concretamente e ousou levar esses ideais até as últimas conseqüências. E deixou um exemplo: a combinação entre a teoria e a ação prática, sem o medo de pagar o preço necessário pelos riscos desencadeados.
Combateu o burocratismo de certos dirigentes e partidos, numa conduta verdadeiramente revolucionária, corajosa e generosa, diferente daquela adotada pelos que hoje abandonam uma perspectiva de transformação profunda em nosso país, dentro de uma lógica conformista, do discurso do possível, que seqüestra o sonho e rouba a esperança.
O Brasil tem desafios enormes pela frente, a começar por superar a brutal e indecente desigualdade social que ainda impera em nosso país. Mas é preciso pensar em como fazer justiça social dentro e fora do país. Ainda não superamos o “subdesenvolvimentismo” e a dependência do capital financeiro internacional. Nos últimos 16 anos, temos tido uma relação subordinada ao que ditam as regras dos bancos e organismos multilaterais de comércio. Nossa política monetária e fiscal ainda responde a esses interesses.
Não fosse assim, não destinaríamos mais de um terço do orçamento nacional para o pagamento de juros da dívida pública interna e externa. Essa enorme dependência financeira restringe nossa soberania e precisa ser urgentemente superada. Para isso, será preciso recolocar os valores socialistas da igualdade, da dignidade, da liberdade e da justiça social na agenda brasileira. Sem medo de tocar nos interesses daqueles que há séculos exploram nosso povo dentro e fora de nossas fronteiras.
0 comentários:
Postar um comentário