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Todo dia ele faz tudo sempre igual.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012


Ele acorda todos os dias, às cinco da manhã, maquinalmente. Sem nem dar conta do que está fazendo, de total costume, ele põe a água para ferver e vai para o quarto de sua filha para acorda-lá. Ele se senta na cama cor de rosa e cutuca, com pena de ter que acorda-lá naquele frio, aquele corpinho enrolado no edredon, pequeno e frágil, sempre tão cheiroso. Ele faz isso num momento complexo de ternura. Ele o faz numa mistura de carinho, cuidado, proteção e puro amor, mas não sem uma certa dor no coração, tão própria de pais solteiros atenciosos que têm seus filhos como a única razão de viver. Ela ficou lá gemendo, protestando e resmungando sem dizer nada de inteligivel. Nisso, ele vai para a cozinha e sem nenhum motivo especifico, apenas por um antigo costume da casa, coloca a toalha na mesa como que querendo ilustrar um café da manhã familiar.

O tempo é curto e a tempos eles estão sozinhos nesse estrangulamento diário que chamam de rotina. Eles precisam colaborar entre si. Ele vai para o banho, enquanto, ainda sem parar de resmungar e ainda sem ter dito uma palavra se quer, ela levanta e vai para a cozinha e encontra, em cima da mesa, pão seco, manteiga a muito tempo fora da geladeira e café com leite frio e mal adoçado. Acabado o desjejum, ela começa a preparar a sua própria lancheirinha. Ela abre o armário, apenas por encenação, pois não há nada ali. Então ela vai para a fruteira e pega uma maça, depois vai para a galadeira e pega um suquinho. Ela os guarda perfeitamente organizados dentro da lancheira de acordo com as suas geometrias. Ela faz isso com uma certo tipo de dedicação, inclinando a cabeça para o lado enquanto o faz, demonstrando satisfação. Esse movimentos graciosos tão simples e verdadeiros compõem uma cena que derreteria o coração de qualquer um e faria lhe saltar lágrimas dos olhos, não pela graça da criança, mas pela composição cinematográfica horrizadora daquele cenário indigente.

Feito tudo isso, ela corre para o quarto vestir seu uniforme para depois se deitar de novo debaixo das cobertas e  aproveitar os últimos minutos antes que o pai a acorde novamente.

Ele termina o banho, se enxagua, veste uma roupa e se arruma na frente do espelho, embora aquilo não lhe tivesse a menor importância. Ele dá uma rápida passada na cozinha, coloca a louça na pia e como que ansioso, vai para o quarto dela. Eles eram totalmente apaixonados, tudo o que um tinha era o outro e nada mais. Mais uma vez, ele a cutuca. Ela finge que não sente, então ele se põe a fazer cócegas em todo o seu corpinho e eles gargalham juntos. Um olhar os faz terminar a brincadeira, enquanto os últimos risos lhe escapam pela boca. Os rostos se transfiguram por uma tristeza que sinaliza que a brincadeira acabou e que eles tinham que seguir em frente com aquele dia torturoso.
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Eram dez-pras-seis da manhã. Eles caminham dez minutos até o ponto onde esperariam o ônibus das seis-e-quinze. Às dez-pras-sete eles chegam na escola onde ela estuda. Ele anda com ela de mãos dadas até a porta, carregando sua pequena mochila. Durante todo o percurso ninguem diz uma palavra. Somente algumas vezes acontecia de ela chamar a atenção do pai para mostrar algo pela janela do ônibus. Na porta da escola, ele a beija na bochecha com um beijo bem melado e a abraça com uma força que não é física e que sufoca com pavor. Despedidos, cada um vai para o seu lado. Ela entra na escola com dor na garganta de tanto segurar aquela vontade de  chorar desesperadamente.

Agora, sozinho na rua, ele tem que correr atrás do seu ganha-pão-seco. Todos o encaravam desconfiados: as pessoas, as árvores, as calçadas, os muros, os postes... Acontece que sua vida foi decaindo. As coisas desandaram e então ele teve que se apropriar de meios inusitados para ganhar a vida.

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Seria possível dizer que, embora as coisas estejam difìceis para ele, ele tem um diploma universitario e ocupa um cargo possivelmente ascendente numa empresa ou algo parecido e que logo tudo se arrumaria. Seria possivel dizer que ele tem um trabalho fixo registrado numa fabrica ou num supermercado. Sem dúvidas. Só não seria possível dizer que ele tem todas as chances de ter tudo isso e que isso só depende de sua boa vontade. Sua competencia lhe foi roubada no Ensino. Todas as suas chances lhe foram arrancadas quando ele foi colocado sozinho no mundo. Sem nada nem ninguém, ele só teve a chance de amar... e o fez. Mas o amor também lhe foi tirado – “por Deus”, como costuma-se ouvir. Depois da morte de sua mulher, que ajudava muito no sustento da casa, só lhe restou sua filha.  E não é nem preciso dizer o quanto ela lhe valhe.

“Oh, pai, meu Pai, afasta de mim esse cálice. Cale-se”. 

Pensamentos como esse ficam em sua cabeça o dia inteiro. Ele vive a vida de um jeito que poucos homens seriam capazes de viver. Um jeito que somente a necessidade mais brutal pode exigir. Ele vive em um problema constante com a Lei. Aponta uma faca aqui, quebra um vidro lá; é uma paranga daqui, um pouco de pó de acolá; fiilho da puta disso, vou matar aquele por causa daquilo. E por aí vai.

É aquela coisa: um homem pode muito bem abrir uma empresa, contratar trabalhadores por um salário que faz deles semi-escravos, vender produtos legais e ficar rico. Não há problema algum. A lei autoriza, a sociedade aprova. A mãe, o pai, o filho, o irmão, o amigo, o padre e o político, todos aplaudem de pé. Um homem de bem, abençoado seja! Não deveis cair em tentações. Agora, quando um tenta tomar de volta o que na verdade tinha que ter para todos, ele se torna um marginal.  Ladrão como qualquer pessoa no mundo, ele é movido pela necessidade gritante que o rosto magro de fome de sua filha gera. A mãe chora, o pai bate, o irmão se mata, o padre condena e o político manda prender.

Foda-se o Armagedon. O Inferno está aqui na Terra. Não há possibilidades de Paraíso quando se está sóbrio.

O dia passou.
Ele pegou sua filha na escola e levou-a para casa.
Colocou alguns restos de comida para esquentar.
Ligou a TV. Eram somente assassinatos, roubos, estupros, corrupções políticas. Desligou-a.
Ele foi para o quarto, abriu uma gaveta, pegou a arma.
Chamou-a.
Ele apareceu na porta do quarto, saltitando de uma perna só. “Olhe, papai” ela ria.
Ele atirou.
Chorou e soluçou.
Colocou o cano da arma na boca.
O sangue escorreu.
Nunca mais sofrimento nem dor.
Nunca mais vida.

Ele nunca foi mau nem nunca agiu mau. Se ele o fosse, então também o seriam todos os outros... ainda pior que ele, por verem maldade somente nele e não em si mesmos.

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